sábado, 16 de janeiro de 2016

A queda de Arcádia: capítulo 1

Saudações, aprendizes! Este é o segundo post de série A queda de Arcádia.
Se você ainda não leu o primeiro, pode lê-lo clicando aqui.

1 - O despertar de Rastler de Rasíris


  Sonhou com uma donzela sardenta, de cabelos ruivos trançados até a cintura. Do alto da torre ela chamava seu nome, e ele, em sua juventude restaurada, corria pelas escadas de espada na mão derrubando um a um aqueles que se opunham ao seu amor. Já perdera o elmo e o escudo, e sangrava de diversos pontos sob a armadura esfarrapada, mas continuava. Cada vez mais forte e cheio de vontade, pois cada degrau para cima o levava para mais perto dela, e sabia que ela esperava por ele.
  - Jeren... - Disse, quando enfim cruzou a porta para a última sala, onde ela esperava-o, linda em um vestido azul. Sorriu ao vê-la, e correu para abraçá-la, beijá-la e amá-la.
  Mas ele estava ali também, em sua armadura de aço negro. Uma espada longa na mão. O
último oponente, e ela enfim poderia ser sua.
  Apertou a mão no cabo da espada e avançou contra o inimigo, que se mostrou um lutador feroz, mas insuficiente. Derrubou-o e apunhalou-o uma dezena de vezes, até que seu braço não aguentasse mais o peso da espada.
  - Mas... O que foi que eu fiz? - Disse de repente, quando a lâmina do arrependimento trespassou-lhe o coração. Chorando, ajoelhou-se sobre o oponente caído e tirou-lhe o elmo negro, revelando um jovem pálido de longos cabelos negros. Seus olhos olhavam-no sem vida, e um filete de sangue escorrera por sua boca. - Eu nunca... Ela deveria ser minha... Minha... Não... Lucian, por favor... Não... Não!
  Rastler de Rasíris acordou de um salto, encharcado pelo próprio suor. Foi um sonho, só isso. Fechou os olhos e levou as mãos ao rosto. Rastler, seu maldito. Esqueça-a. Levantou da cama e andou até a mesa no centro do quarto, onde a taça e meia garrafa de vinho da noite anterior ainda o aguardavam. Vinho, é isso. Nada melhor que um pouco para afogar sonhos ruins. Deu um tapa na taça, fazendo-a cair e estilhaçar-se no chão. Bebeu direto da garrafa. Droga. Nem todas as garrafas do mundo me farão esquecê-la. Jogou a garrafa contra a parede, quebrando-a também. Esqueça-a. Ela não lhe pertence. Nunca pertenceu.
Colocou o manto e saiu para a sacada. Lorde Orion lhe alojara num quarto de hóspedes na ala norte da Ilhota dos ventos, e da sacada podia ver da margem norte do rio até a mata e o sopé das montanhas a nordeste, o caminho para Granlago. Lá embaixo, o movimento era intenso. O sol aparecia tímido do leste, e as tropas negras cruzavam a ponte e entravam na Ilhota pacificamente. Isso é bom. Três castelos, nenhuma morte.
  Franziu o cenho, a conta não estava certa. Três mortes, na verdade, Ricardus Tormen e os dois tolos que o defendiam. Ainda não deixam de ser bons números. Vestiu-se e deixou o quarto.
  Rex estava do lado de fora da porta, montando guarda.
  - Com sono, soldado? - O homem vermelho era seu melhor lutador. Um amigo. Rastler conhecera Merax há quase quinze anos, na vastidão vermelha e escaldante das terras do além leste. Não havia homem que igualasse as habilidades de combate do povo vermelho. Por sua ferocidade, foi apelidado Rex, como as feras que rondam sua região natal: lagartos bípedes ferozes e sanguinários que devoram viajantes desavisados. E tolos avisados também. - Problemas?
  - Ninguém tentou passar por mim.
  - Meu primo já cruzou a ponte?
  - Já. Os comandantes das tropas negras foram os primeiros a atravessar. Esperam pelo senhor no salão principal.
  - E quanto ao Ron? – Perguntou Rastler, olhando ao redor e sentindo falta de um dos seus guerreiros.
  - Eu o liberei no meio da noite. Um guerreiro distraído não desempenha bem o seu papel.
  - Eu entendo. -  Ron deve ter ido até a cidade procurar mulheres. E deve ter torrado a paciência de Rex até que o liberasse. Obrigou-se a sorrir. - Tudo bem, Rex. Sei que você seria o suficiente. Está dispensado. Entre no quarto e durma.
- Não gosto dessa cidade. Muitos falsos amigos.
- Não passaremos de hoje, eu prometo. Descanse, estará seguro aqui. Partiremos ao pôr do sol.
- Não dormirei aqui. Prefiro dormir no acampamento.
- Como queira. – Rastler ordenara que sua companhia permanecesse ao norte do rio. Tomaria a Ilhota, e apenas isso. O resto deixaria com o príncipe. - Então venha comigo até o salão.
  O guerreiro assentiu. Os dois desceram pelas escadas, passando por um ou outro criado, que se assustavam à simples visão do homem vermelho. Pertencem a mundos diferentes. Ele jamais será aceito nessas terras, assim como jamais aceitará nossos costumes. Rex sempre fora silencioso, nunca puxando assunto. Fora o seu primeiro companheiro no exílio, e era seu melhor soldado dentre os seus duzentos Bastardos Sangrentos.
  O grande salão estava lotado. Mesas haviam sido postas e criados andavam para lá e para cá com a refeição matinal dos nobres. Lorde Orion ocupava o lugar principal, como era próprio de sua senhoria. Lorde Anton estava ao seu lado direito, e depois dele os filhos Sir Jonas e Sir Jan. Tipos interessantes esses aí. Conquistara Sir Jan pela amizade, após a batalha de Granlago. Libertara-o e mostrara tudo o que Arcádia poderia fazer pelo povo do rio. E claro: oferecera para ele uma senhoria, a fortaleza da Margem de Sangue. Seu irmão Jonas parecia um pouco mais rebelde, mas acabara dobrando o joelho também, assim como o tio Orion. O pai deles, no entanto... Lorde Anton Granrios foi o último grande senhor a prestar juramento à Arcádia, mas mesmo assim podia-se ver claramente sua má vontade. Mais tarde naquele mesmo dia, o mago conselheiro, Droclau, incitara uma pequena rebelião, que rapidamente foi contida por sir Jan e a guarda do castelo. Rastler deitou-se à noite para dormir indagando se lorde Anton não teria incitado o mago a rebelar-se. Pare com isso, Rastler, seu idiota. É muito cedo para julgar a lealdade deles.
  O Príncipe Negro encontrava-se ali também. Lucian, o filho mais velho do Rei Teobald de Rasíris. Não era o herdeiro do trono de Arcádia, pois era de nascimento ilegítimo. Um maldito bastardo, mas com toda a pompa real. Vestia sua armadura de aço negro quase que completa, apenas sem o elmo. Sua pele era branca, e os cabelos longos e negros. Parecia mais jovem do que realmente era, e sua aparência parecia um tanto delicada. Mas já passara dos trinta anos. Sentava-se ao lado esquerdo do anfitrião, com seus principais comandantes também à mesa. Rastler os conhecia bem: tanto jovens cavaleiros e herdeiros das famílias mais importantes de Arcádia, como também velhos cavaleiros, cujos feitos já haviam se tornado lendas.
  - Senhor... - Rastler fez uma curta reverência. - Agrada-me vê-lo deste lado do rio.
  - Rastler, seu maldito bastardo. Você conseguiu. - Lucian deu um breve sorriso. Indicou um lugar à mesa principal. - Sente-se. Temos muito e ainda mais para tratar.
  - Como desejar, senhor. - Rastler sentou-se, com Rex ao seu lado. O homem vermelho não era bem visto nem mesmo dentre as tropas negras, mas isso não parecia importar. Rex começou a comer e beber sem cerimônia. - O que acha da Ilhota dos Ventos?
  - Um lugar agradável. - O príncipe negro olhou de relance para seu anfitrião. - Lorde Orion me deixou a par dos acontecimentos de ontem à tarde.
  Claro, a pequena rebelião dos magos. Mestre Droclau e dezesseis jovens aprendizes foram jogados no calabouço. Ninguém foi morto, e todos aguardam julgamento.
  - Uma tentativa vã de resistência, se me permite dizer. - Pegou uma taça de vinho e bebeu um longo gole. - Esperam pela justiça do Rei.
  - Erro seu, Rastler. - Lucian soou severo. Você é previsível, caro primo. No meu lugar teria jogado todos na fogueira, não é? Seu maldito sádico.
  - Discordo, meu senhor... - A tensão caiu sobre a mesa. Não era comum alguém confrontar Lucian, o Negro, dessa forma. Qualquer um dos outros senhores presentes teria admitido o erro, mas não o capitão dos Bastardos Sangrentos. - Dei a eles a chance de fugirem, e não me arrependo.
  - Segure sua língua imunda na presença do príncipe, Rastler. - Lorde Leonard Mardul chamou sua atenção. Com seus longos cabelos cor de fogo, o senhor de Lago Mardul era um dos favoritos de Lucian.- Por acaso esqueceu-se de que qualquer tipo de magia é proibido em Arcádia?
  Foda-se, palhaço. Você não seria nada sem o nome de seu pai. Sorriu e depois disse:
  - Não me esqueci das leis do Rei, Mardul. Hoje a Ilhota pertence à Arcádia, mas ontem não pertencia. Mostrei piedade a eles, dando-lhes a chance de fugir. Mostrei aos senhores do rio que nossa causa é justa e clemente. E como disse antes, não me arrependo do que fiz.
  - Palavras sábias, meu primo. - O tom de Lucian mantinha a seriedade. - Agora entendo seu ponto de vista.
  - Mesmo assim, não foi capaz de poupar Lorde Ricardus Tormen? - A pergunta agora vinha no tom acusador de Sir Dante de Karanus, outro dos favoritos do primo. Um pouco acima do peso, o jovem herdeiro da Vigia de Karan parecia um touro em armadura negra. - Seria um precioso refém se o tivéssemos vivo.
  - Ricardus Tormen não aceitou a paz do Rei. - Era só o que me faltava. Lutei batalhas por todo o continente como líder mercenário, e agora cá estou, tendo de dar explicações para nobrezinhos de ego empinado. - A única solução que encontrei para ele foi a morte. Se errei ou não nesta questão, cabe a Lucian decidir.
  - Se me permite dizer, senhor... - Sir Jan Granrios entrou na conversa, intercedendo por Rastler: - Ele não teve escolha, foi Lorde Ricardus quem o atacou.
  - Isso é verdade, Lorde Orion? - Perguntou o príncipe negro.
  - Sim. - O anfitrião, que ocupava-se com um belo e generoso pedaço de carne, limpou a boca antes de responder. Ao seu lado seu irmão comia sem se fazer notar. Lorde Anton não aceitou a paz do Rei. Dobrou o joelho, mas por quanto tempo? Seu rosto transbordava de insatisfação. - Ao ver que seus termos eram bons e que não poderíamos recusar, ele tentou resolver isso com as próprias mãos.
  - Uma jogada ousada, a dele. - Agora era Sir Jonas quem falava. Esse aí fala o que pensa, e não parece ter medo das conseqüências disso. Rastler sempre admirava tais ações. Aqueles que nos dizem a verdade, por pior que seja, são nossos homens mais leais. Aqueles que omitem e amenizam os fatos estão mais propensos à traição. Essa, na opinião de Rastler, era uma verdade incondicional. - Se Ricardus Tormen tivesse matado Rastler, nossa chance de trégua cairia por terra. Seríamos obrigados a lutar e perder. E não estaríamos aqui agora.
  - Você fez bem, Rastler. - Lucian deu um breve sorriso. - Tenho certeza de que meu pai o recompensará bem pelos seus serviços.
  - Me lisonjeia, senhor, mas não pretendo ir à capital tão cedo. - Voltar à Pedra das Estrelas representava muitos reencontros indesejados.
  - Não pretende, mas vai. - Lucian pegou um pergaminho que estava enrolado sobre a mesa e alcançou ao primo. - Isto chegou ontem. Leia.
  Desenrolou o pergaminho e a primeira coisa que notou foi o selo real: um castelo rodeado por estrelas. Estava escrito:

  A Lucian, o príncipe negro de Arcádia, Senhor comandante das Tropas Negras

  Caro Lucian, a hora chegou. Depois de cinqüenta anos, trinta e três dos quais como Rei de Arcádia, é tempo de passar a coroa adiante. A Doença fez de mim menos da metade do que já fui um dia, e temo não suportar mais por muito tempo. Por isso, para celebrar meu qüinquagésimo aniversário, será feito um enorme festival em Pedra das Estrelas, e a presença de todos os meus filhos, netos, irmãos e demais parentes é fundamental e muito importante. Todos os castelos devem enviar um representante, sejam senhores ou herdeiros. Haverão festins, jogos e banquetes, e no final um novo rei será coroado. Espero pela sua presença, meu amado filho.

  Rei Teobald de Rasíris I, Senhor de Pedra das Estrelas e Rei de Arcádia.

  Rastler terminou de ler apenas para recomeçar. De novo e de novo. Então teremos um novo Rei em Arcádia. Conhecia a atual situação do tio: Sem poder andar, e em eterno luto pela sua rainha. Ouvira rumores de que os órgãos estavam lhe falhando. Com toda certeza merece um descanso, e Ricard está mais do que apto para governar em seu lugar. O primogênito do rei já tinha vinte e nove anos, três filhos e incontáveis vitórias em batalha. E ainda por cima era amado pelo povo. E terá o irmão para auxiliá-lo.
  - Festins e torneios não combinam comigo. - Falou ao devolver o pergaminho. - E, além disso, precisa de homens aqui.
  - As tropas negras ficarão. Deixarei homens competentes no comando. Você vai.
  E assim foi. Partiram da Ilhota naquela tarde, após Lucian dividir suas tropas em três: uma parte em Granrio, outra em Águas Escuras e outra na Ilhota dos Ventos. Deixou generais veteranos no comando, homens duros pela vida no campo de batalha. Levou consigo todos os herdeiros importantes. Sua turminha de cavaleiros negros. Rastler ia à frente, com Ron, Rex e Sir Jonas ao seu lado. Logo atrás vinha o príncipe negro, acompanhado por Sir Sigfried Travel, seu braço direito, e Sir Jan Granrios. Depois uma comitiva formada por Lode Olaf, Lorde Anton e uma dúzia de cavaleiros das terras do rio. Logo atrás deles vinham os escudeiros. A retaguarda ficou à cargo de Sir Dante de Karan, com mais duas dezenas de cavaleiros. Bela sacada, primo. Tirou os Granrios de seus castelos e os leva para a capital. Os senhores menores do rio jamais se rebelariam enquanto seu suserano fosse nosso refém.
   Lucian queria fazer a viagem em menos tempo possível, e com isso cortou toda a bagagem extra. Seriam hóspedes em castros e fortalezas que encontrassem pelo caminho e cavalgariam dia após dia.
  Mas primeiro passariam pelo acampamento dos Bastardos Sangrentos. Minha própria turminha.



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