terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Diálogo Interplanetário

  Num segundo, gritos. E então seu mundo girando ao redor, um turbilhão de cores e sons e cheiros e sabores, queimando enquanto congelava, como se experimentasse todas as sensações de sua vida de uma única vez.
  Ou como se tudo estivesse sendo sugado de si.

  Raquel abriu os olhos repentinamente, e deleitou-se naquele momento em que se acredita que o pesadelo acabou.
  Até que o viu, ao pé de sua cama, observando-a.

  O estranho.

  Era alto. Não saberia dizer o quão alto. De certo modo a precisão lhe escapava. E magro, como uma versão distorcida de um corpo humano esticado. Era incapaz de focar o rosto, mas tinha a certeza de ser observada.
  Vergonhoso. Uma doutora em exobiologia que não conseguia se concentrar na aparência de um ser
vivo desconhecido.
  -Doutora Hartz. - Ouvir sua voz era como ouvir pela primeira vez. - Deve estar se perguntando o motivo de estar aqui.
  Raquel olhou ao redor. Estava num quarto exatamente igual ao que tinha no dormitório da Velejadora Solar 23. Mas apenas quando e onde olhava. Pelo canto do olho era capaz de perceber a real aparência do lugar onde estava. Perceber não era a palavra correta. Tudo lhe escapava.
  -Não estou na nave. Sei disso. - Sua voz saiu mais trêmula do que gostaria. - Pelo menos não na minha nave.
  -Tornei este pequeno lugar habitável à sua espécie, doutora. - teve a impressão de que o alienígena falava diretamente em sua mente. Teve vontade de gritar. - Tentei deixá-la o mais confortável possível. Para que pudéssemos conversar.
  -Por que? - Lembrou dos tentáculos. Da forma como arrastaram Dex pela nave alienígena, até sumir de vista. Do dr. Rodrigues sendo arremessado para o espaço, gritando por socorro pelo comunicador.   - Você nos atacou. Agora quer conversar?
  -Não. - Uma pausa. Raquel jamais seria capaz de dizer quanto tempo ficou esperando que o alienígena retomasse a fala. - Humanos invadiram meu sistema. O que você viu anteriormente foram as medidas padrão de segurança.
  -Dex. - Não conseguia tirar da cabeça os gritos de sua assistente. - Onde está Dex.
  -O que quer realmente saber é se seus companheiros estão vivos. Sim, estão. Todos os espécimes foram estudados minuciosamente. Do contrário, nem mesmo nossa comunicação seria possível.
  -O que… Era bizarro demais. Sentiu-se tonta.
  -Doutora. - O alienígena ergueu a mão. A direita ou a esquerda? - Beba um copo d'água.
  Haviam copos lacrados de água ao lado da cama, no painel de suporte vital. Exatamente igual ao meu quarto na nave. Ou quase.
  Havia uma arma sobre o painel.
  Ignorou a arma e tomou a água. Era a melhor coisa que bebera a vida toda.
  -Por que está fazendo isso? Tem o poder para nos matar. - Mais um copo. Era realmente bom. - Onde está o resto da minha tripulação?
  -Sua tripulação está onde deveria estar. Ou seja, na Velejadora Solar 23. A nave está sendo preparada para dar a volta em saturno e ser assim mandada de volta para a terra.
  Aquilo chocou Raquel profundamente. A missão teria, então, falhado miseravelmente. Das trinta e seis naves gestacionárias que partiram da terra, doze tinham como destino o sistema de satélites de saturno, e apenas três aproximaram-se significativamente do planeta, embora tenham perdido o contato com a VS21 duas semanas antes. A VS22 orbitaria o planeta para estudo de seu sistema de anéis, enquanto a VS23 encaminhava-se para Titã, para dar início ao processo de terraformação. Foi então que encontraram aquela estrutura enorme no espaço. Agora Raquel perguntava-se se aquele alien seria o responsável pelo sumiço da VS21.
  -Nada sei sobre o paradeiro da velejadora 21, doutora, antes que pense que a exterminei.
  -Você está na minha cabeça. - Raquel horrorizou-se. - Como saberia no que estava pensando?
  -Com base nos estudos que fiz de sua espécie, doutora. Vocês consideram seu subconsciente como algo imprevisível e inconstante, mas devo dizer que a capacidade lógica humana ainda me parece… Rudimentar, para não ofender.
  -E vai mandá-los de volta assim? - Raquel desejava acordar daquele pesadelo, mas sabia que não era possível. Nem em sonho conceberia tais absurdos. - Eles sequer…
  -Eles não lembram de nada. Atribuem o fracasso da missão a problemas técnicos e...
  -Pare de deduzir o que vou dizer. - Gritou, e no momento seguinte sentiu um calafrio como nunca antes havia sentido. - Se sabe tudo o que vou falar, qual é o objetivo dessa conversa?
  -Isso. Está entendendo errado, doutora. Mesmo com minha capacidade lógica, não sou capaz de compreender cem por cento os aspectos inerentes à sua psicologia. Sua espécie é nova para mim.
  -Espere. Está dizendo que não tinha conhecimento sobre a raça humana antes de nosso encontro na órbita de Titã?
  -Exatamente. - Fez uma pausa para que Raquel pudesse beber mais um copo d'água. - Sua espécie parece ter sido gerada por uma infeliz anomalia evolutiva, o resultado de um sistema complexo de coincidências tão imprevisíveis que, devo dizer, me senti até mesmo espantado.
  -Anomalia evolutiva. Somos assim tão diferentes?
  -Não se esqueça, doutora, de que criei este ambiente e até mesmo minha atual aparência pra que nossa comunicação fosse possível. Do contrário, um encontro físico entre nós dois poderia matá-la.
  -Faz sentido. - Mais um copo. Agora era como se a sede não passasse. Não deixou de notar aquela arma mais uma vez. - Não consigo perceber direito… como posso chamá-lo?
  -Não precisa me chamar de nada. Pelo menos por enquanto.
  -Se me permite perguntar. - Raquel conseguia agora ordenar melhor seus pensamentos. Era a pesquisadora renascendo. - O que faz orbitando Titã?
  -O mesmo que você, mas um pouco adiantado, por assim dizer. Sua espécie pretendia terraformar Titã, com a finalidade de criar um mundo habitável para a população terrena, uma vez que a terra se tornará inabitável num curto período de tempo.
  -Disse que está adiantado. Chegou primeiro?
  -Alguns bilhões de anos, sim.
  -Desculpe?
  -Minha espécie moldou os sistemas ao redor de Júpiter e Saturno para que abriguem vida daqui a aproximadamente 1,768329 evoluções solares.
  -1,7 evoluções solares? Use uma medida mais precisa, pelo menos para mim.
  -5,389 bilhões de anos terrestres. A estrela do atual sistema planetário aumentará cerca de cinquenta vezes seu calor e intensidade. Até lá, a radiação dos chamados gigantes gasosos tratam de preparar o ambiente. Talvez seja a maior obra-prima que criei.
  -Espere um pouco. - A doutora se sobressaltou. - Como pode dizer que criou planetas do sistema solar? Como pode estar vivo há bilhões de anos?
  -Devo dizer que sua espécie e a minha encaram a dimensão temporal de uma forma diferente. Seu intelecto não tem a capacidade necessária para compreender questões que destroem suas concepções físicas atuais.
  Raquel ficava cada vez mais perplexa. Sempre sonhou em ser a descobridora de uma forma de vida alienígena. Mas acontecera o contrário. Fora descoberta, e por uma força incompreensível demais.
  Bizarra demais.
  -Deixe-me entender. - Levou a mão ao painel do suporte vital para pegar outro copo d'água, mas não o encontrou. Sentiu o metal frio da arma entre os dedos. Soltou-a rapidamente. - Vai esperar cinco bilhões de anos para o sol evoluir. Mas o próximo estágio será mais curto. Seus sistemas serão mais breves que a terra. O sol vai esfriar rapidamente. Valerá a pena esperar tanto tempo para viver em um sistema de planetas de vida tão curta?
  -Entendeu-me errado, doutora. Ou talvez eu não tenha sido claro o suficiente. Minha espécie não tem a intenção de migrar para Titã ou qualquer destes satélites. Meu interesse nesses satélites é… Puramente acadêmico.
  -Está dizendo que vai cultivar a vida para estudá-la? Você é então um tipo de pesquisador?
  -Sim, pesquisador está entre as muitas classificações a que você poderia me atribuir. Por isso meu interesse em você, doutora Hartz. Somos de certa forma semelhantes.
  -Não sei o que dizer. Por isso não matou minha tripulação. Os está enviando de volta para não interferir no nosso próprio curso evolutivo.
  -Sim. E não. Devo admitir que o fator mais admirável de sua espécie seja talvez a forma como lutam contra sua própria extinção. Entendo as razões do projeto Velejador Solar, embora considere sua espécie como um caso irreversível. Sua probabilidade de extinção ultrapassa noventa e oito por cento. Terraformar outros planetas é uma medida temporária. No final, suas mentes primitivas tratarão de destruir qualquer habitat onde estejam instalados. Sua espécie é uma praga, doutora Hartz, e mesmo que não queira interferir em sua história evolutiva, não poderei permitir intrusos em meu sistema de satélites.
  -Mas você os está mandando de volta para a terra.
  -Julga-me por tolo se pensa que acredito que os humanos desistirão de seus planos. Vocês nunca desistem. É o que caracteriza sua espécie.
  -O que fará, então? - Raquel começou a sentir uma ponta de desespero.
  Ele os está enviando de volta.
  -Desenvolvi, certa vez, uma arma perfeita que poderia erradicar qualquer ameaça à minha civilização. Embora nunca tenha sido capaz de testá-la, sua eficiência se mostrou arrasadora em todos os cálculos e cenários possíveis.
  -Nos está condenando à extinção, então? - Não pensou que fosse funcionar, mas não tinha outra opção. - Um verdadeiro pesquisador jamais faria algo do tipo. Não é a solução lógica.
  -A lógica humana deve ser descartada quando se lida com um ser alienígena, doutora. Não me entenda mal, já disse que o ser humano será o responsável por sua própria extinção. Apenas acelerarei o processo.
  Raquel olhou de relance para a arma, cada vez mais tentadora. Não saberia dizer se funcionaria, e tão breve foi seu olhar para o objeto que torcia para que o alienígena não tivesse percebido.
  -Que tipo de arma é essa? - Queria ganhar tempo, embora não soubesse exatamente o que poderia fazer. - Como ela funciona?
  -Tive de fazer uma série de modificações para adequá-la à raça humana, e devo dizer que foi um desafio inesperado. Havia tempo não lidava com organismos tão simples. Mas o resultado foi satisfatório. - Raquel pensou ter visto um sorriso. Ou sentido. Não conseguia se concentrar no rosto do alienígena. - A arma consiste na manipulação de duas forças que, uma vez que ativadas, não descansarão enquanto a outra não for destruída.
  -Duas forças? - Aquilo não fizera sentido. - Não entendo. Que forças são essas? Como elas destruirão a raça humana?
  -Fiz alterações no código genético de dois dos integrantes de sua nave. Cada um deles carrega a informação necessária para executar minha arma. No entanto, os dois componentes precisarão ser ativados para que o processo destrutivo se inicie.
  -Está dizendo... - Raquel estava atordoada. - Que programou o dna de dois humanos para acabar com toda a humanidade? Como isso será possível?
  -Uma vez que os ambos gatilhos necessários para o processo forem ativados, os dois iniciarão uma guerra que consumirá sua espécie. Terão, lógico, a capacidade de se replicar infectando outros humanos. Assim, em pouco tempo, cada habitante da terra será um soldado que lutará até a morte.
  -Maldito. - Raquel pegou a arma sobre o painel e, num rompante irracional de bravura, disparou.
  Disparou de novo e de novo, até que a munição acabasse. E da cama onde estava viu aquele corpo retorcido se desmanchar.
  O quarto sumiu, e Raquel foi mergulhada numa escuridão fria e amedrontadora. Não sabia onde estava, nem o que seria dali para frente.
  Quando, dentro de sua cabeça, a voz do alienígena se fez ouvir.
  -Essa é a prova definitiva de que eu tinha razão, doutora. Sua espécie é primitiva demais. Deixei a arma sobre o painel porque sabia que a usaria, mais cedo ou mais tarde.
  -Estava brincando comigo, então?
  -Tudo o que disse a você era verdade. Estava apenas fazendo mais um… Experimento.
  -E agora?
  -Será enviada para a terra com seus companheiros, doutora. Terá a plena memória de nossa conversa. Manterei sua mente intacta.
  -Por que?
  -Lhe darei uma chance. Quando atirou em mim, ativou o primeiro gatilho de sua extinção. Tente impedir o segundo.

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