domingo, 10 de janeiro de 2016

Na teia da mulher aranha


Roger havia chegado cedo ao restaurante, mas sentia que estava valendo a pena. Era a primeira vez em dois anos que saía de novo. Com uma mulher, ao menos.
Claro que passou a semana toda tentando convencer seus amigos de que ela era real, não uma farsa. Tentava, acima de tudo, convencer a si mesmo. Afinal, sempre há esse risco quando se conhece alguém pela internet.
Deu o maior de todos os sorrisos quando ela entrou. Ela era muito mais linda do que pela tela do computador.
Sentiu-se com sorte.

Samanta reduziu a velocidade e estacionou. Desligou o motor e ficou escutando a chuva.
Dez minutos para as onze horas, era o que marcava o celular. Quase na hora.
Tateou o isqueiro de Jonatas no bolso. O noivo sempre havia fumado, mas perdia o isqueiro. Samanta sempre carregava um reserva. Velhos hábitos não morriam.
Estava começando a ficar nervosa.
Apagou os faróis, o que reduziu drasticamente sua visão da rua. No entanto, tinha certeza de que poderia ver o que precisava.
Abriu o porta luvas e pegou um bloco de notas e uma caneta. Abriu-o para mais uma
conferida:
23/07 – quinta – 23:35 – golf prata.
06/08 – quinta – 23:40 – uno vermelho.
20/08 – quinta – 23:00 – saveiro preta.
Fechou o bloco e respirou fundo. Onze horas.
E o coração disparou.
Torcia para estar enganada. Onze e quinze.
Não estava.
Primeiro viu a luz, uns cem metros adiante, e então o carro que vinha em sua direção.
E, a meio caminho de onde estava, a casa que estivera observando havia um mês.
Não entre. Seu coração parecia bater mais alto do que a chuva na lataria. Não entre.
O portão eletrônico então se abriu e Samanta viu o carro entrar pelo pátio.
Nervosa, e cada vez mais decidida de que estivera certa e a polícia errada, pegou o bloco e anotou:
03/09 – quinta – 23:15 – palio vermelho.
O portão se fechou tão logo o carro entrou, como de costume. Samanta se esforçou para ver o carro o máximo que pôde. Talvez algum detalhe que não pudesse deixar passar. A única coisa que foi capaz de notar era o adesivo na porta, indicando uma empresa de instalação de ar condicionado.
Então sobressaltou-se. Conhecia muito bem aquele carro.
Roger?

Samanta havia visto Jonatas no domingo, vinte e oito de junho. Almoçaram juntos e terminaram a pintura da casa nova. Ao cair da noite foram ao cinema, depois dormiram juntos. Na segunda, Samanta teve de sair depressa, pois havia perdido a hora. Despediu-se de Jonatas como sempre fazia, um beijo e um eu te amo.
Não sabia que o estaria vendo pela última vez.
Falavam-se todos os dias, mesmo quando não se viam. Mas na segunda à noite Jonatas não ligou. Nem na terça, nem na quarta. E quando Samanta tentava ligar, caixa postal.
Não quis se desesperar, no começo. Podia ser um problema com a operadora. Resolveu ir vê-lo na faculdade, na quinta.
Mas ele não apareceu. Por um de seus colegas soube que Jonatas estivera na aula dos três primeiros dias de semana, mas diferente, parecendo distante.
Resolveu, então, ir à  casa dele. O carro não estava na garagem, sinal de que não tinha ninguém.
Tentou ligar mais uma vez. Nada.
Mas Samanta tinha a chave. Começava a ficar preocupada. Resolveu entrar para dar uma olhada.
A casa estava estranhamente bagunçada. Não revirada, mas bagunçada. Roupas espalhadas, sapatos por todo o canto, a louça toda suja. Jonatas nunca fora bagunceiro, muito pelo contrário, era organizado demais.
O quarto estava dez vezes pior. Parecia um cenário de guerra. Além das roupas espalhadas, caixas de pizza e garrafas.
Sobre a cama, o notebook.
Samanta torceu o nariz, mas não tinha outra opção.
Ela conhecia todas as senhas de Jonatas, ao passo que ele também não havia se dado ao trabalho de fazer log off. Estava tudo lá, era só ler.
Primeiro havia ficado com raiva, é claro. Jonatas marcara um encontro com outra mulher. Não conseguia acreditar. Estava jogando fora tudo o que tentavam construir.
Largou o notebook e foi para casa, disposta a esquecer Jonatas.
Era difícil. Não percebeu, mas já estava chorando.

Roger estava mesmo com sorte
Havia conhecido Raquel pela internet e, em menos de uma semana, já estava na casa dela.
Sentia-se entorpecido, hipnotizado, a cabeça nas nuvens como nunca antes. Não reclamou quando ela o levou para o porão. Não estranhou quando, das costas dela, imensas patas de aranha desdobraram-se para fora. Não gritou de dor quando essas mesmas patas o ergueram com uma força incrível e o colocaram na parede, envolvendo-o com uma espécie de teia.
A mulher aranha terminou seu trabalho com esmero. Roger, apenas com o rosto para fora da teia, contemplava-a admirado.
Ela era perfeita, afinal.

Samanta havia tentado esquecer Jonatas, mas nos dias seguintes seus amigos e familiares começaram a ligar para ela, atrás de notícias dele. Foram dois dias de ligações até que ela suspeitasse de que havia algo errado. Foi então que decidiu ir à polícia, mas os idiotas apenas começaram a se mexer depois de dias, mesmo tendo insistido que Jonatas não era dado sumiços irresponsáveis. De qualquer forma, havia tentado.
Mas ficou com aquela dúvida. Havia a raiva, é claro. Mas conhecia o seu noivo. Ou julgava que conhecia.
Começou, então, a investigar por conta própria. O que a trouxe a este momento.
Colocou a mão no bolso e encontro o isqueiro de Jonatas lá mais uma vez. Desceu então do carro, sem se importar com a chuva, e esgueirou-se até o portão onde vira o carro de Roger entrar. Conhecia-o do trabalho. Havia sido Roger quem apresentara Jonatas a ela.
Estava em frente ao portão, com a chuva a açoitar-lhe o rosto. Era o mais longe que já havia ido, e não sabia onde poderia estar se metendo.
Estava apavorada. Mas sentia que estava perto de algo. Além disso, era como se a curiosidade estivesse tentando matá-la.
Que se dane. Subiu no muro e pulou para o outro lado. Totalmente encharcada pela chuva, procurou por uma forma de entrar na casa.

Roger estava sorrindo, mais dois e seria a sua vez.
Não era o único convidado de Raquel no porão. Havia outros. Ela se ocupava alguns minutos com cada um.
Quando finalmente Raquel parou a sua frente, sentiu-se o homem mais feliz do mundo. Chorava de tanta felicidade.
A mulher aranha envolveu seu rosto com as mãos, e quando estava prestes a beijá-lo, ouviram o barulho de vidro se quebrando. Ela então soltou-o e virou-se para sair, e ele sentiu como se estivesse sendo abandonado.
- Por favor. – Choramingou. – Não. Não vá.
- Comporte-se que daqui a pouco eu volto, querido. – Passou a mão em seu rosto, e Roger sentiu-se reconfortado.
Raquel, então, subiu as escadas em direção à casa.

Para o espanto de Samanta, a porta da cozinha não estava trancada. Esgueirou-se para dentro com todo o cuidado que pôde. Era uma cozinha fina, pôde perceber mesmo no escuro. Pé por pé, encaminhou-se para a sala, fugindo da escuridão.
A escuridão, porém, era a mãe de todas as traiçoeiras, e fez com que Samanta topasse na mesa, derrubando uma garrafa de vinho que se estilhaçou em mil pedaços, fazendo o mais alto barulho do mundo.
Samanta gelou. Como que por puro instinto, atirou-se para trás da mesa e esperou. Quando começava a tranquilizar-se, ouviu uma porta se abrir, e passos na sala. Arrastou-se o mais silenciosamente que pôde até a lavanderia e escondeu-se atrás de uma pilha de roupas.
Dali escutou uma mulher chegar até a cozinha e acender a luz.
De onde estava podia ver a sombra da mulher, embora tenha pensado que algo estava fazendo um jogo de sombras bizarro, pois via quatro membros compridos como patas de aranha ao redor da silhueta.
Rezou para não ser encontrada. E não foi. Ouviu os passos se afastarem, e respirou aliviada.
Então viu. Com a luz da cozinha acesa agora, pôde ver a pilha de roupas que lhe servira de esconderijo.
Não eram para lavar. Eram para jogar fora.
Calças, camisas, jaquetas, meias e pés de tênis, todos rasgados e ensanguentados.
Desviou o olhar. Droga. Onde estou me metendo? Pensou em Jonatas.
E em Roger. Seu amigo poderia ainda estar vivo.
 Com coragem chegou até a cozinha e, por baixo da mesa, pôde ouvir Raquel na sala, procurando. Juntou o maior caco da garrafa que ainda estava no chão e colocou-o no bolso. Amaldiçoou-se por ter deixado o celular no carro.
Espiou e não viu sinal da mulher. Resolveu sair de debaixo da mesa.
Estava alcançando a porta para a rua quando sentiu uma pancada na cabeça. Desabou de vez.

Roger abriu-se no maior dos sorrisos. Raquel estava voltando. Trazia uma jovem no ombro, alguém estranhamente familiar.
Mas não se importou com isso.
Finalmente seria a sua vez.

Acordou com a cabeça latejando. Colocou a mão e constatou sangue sob o cabelo. O mundo deu voltas antes que pudesse perceber onde estava.
Era um porão mal iluminado, mas impossivelmente grande. Era um lugar úmido e bolorento, o cheiro de mofo invadia suas narinas causando-lhe náuseas.
Mas havia algo pior. As paredes eram decoradas com casulos. Eram coisas grandes e feias, em tamanho humano.
E, no alto de cada um, uma cabeça humana de fora.
Algumas eram secas e em decomposição, ao passo que outras pareciam ainda estar vivas, mas num estado moribundo. Algumas pareciam apenas adormecidas, embora os rostos estivessem vermelhos e cheios de veias saltadas.
Viu também Raquel, num canto afastado, envolvendo um dos homens num beijo estranho. Das costas da mulher, imensas patas de aranha abraçavam-no com força. Do rosto, um par de grandes quelíceras encravavam-se nas bochechas do homem, enquanto suas mãos humanas afagavam o cabelo da vítima.
Com esforço Samanta conseguiu ficar de pé, embora o mundo tenha girado e ela tenha caído de novo. Raquel estava distraída e não a viu. Colocou as mãos nos bolsos. O isqueiro de Jonatas e a garrafa quebrada. Pegou o caco da garrafa.
Avançou devagar, fazendo o mínimo de barulho que sua condição permitia. Ainda estava tonta, e o canto esquerdo de sua visão se tornara um borrão escuro.
Ainda assim, avançou. Tentava não olhar para os casulos. Algum deles pode ter sido Jonatas. Meneou a cabeça e afastou tal pensamento. Depois. Agora estava caçando.
Aproximou-se de Raquel sem despertar-lhe a atenção. A mulher aranha estava numa espécie de êxtase, por isso não a percebeu.
Samanta então ergueu sua garrafa quebrada e, sem hesitar por um segundo sequer, desceu com força nas costas de Raquel.
Não foi um golpe muito bom, verdade seja dita. Não foi eficiente como uma faca teria sido, por exemplo. E a inexperiência de Samanta para algo do tipo também não foi de grande ajuda. A verdade é que o caco de vidro machucou a mulher aranha, mas havia cobrado seu preço, um ferimento profundo na mão de Samanta.
A primeira coisa foi o grito de Raquel. Não um grito humano, mas algo bestial. Samanta havia se abaixado, segurando a mão ferida.
A mulher aranha então se voltou para ela, seu rosto transformado. Tinha seis olhos ao invés de dois, e um par de quelíceras que se abriam revelando uma boca cheia de dentes finos e pontiagudos.
- Desgraçada. – Sua verdadeira vez causou arrepios Samanta, que sentiu a raiva daqueles seis olhos.
Ergueu-a com suas patas de aranha. Arremessou-a longe.
Samanta percorreu todo o porão pelo ar, num período que lhe pareceu absurdamente longo.
Atingiu a parede com tudo, ao som do estalo de mil coisas se quebrando. Desabou meio sentada contra a parede, apenas para descobrir que não conseguia mais mexer as pernas.
- Cadela. – Raquel se retorceu para retirar o caco de vidro das costas. A mulher aranha começou então a andar lentamente na sua direção.
- Não vá, não agora. – Samanta ouviu uma voz conhecida chamar. Roger? Era difícil até pensar.  – Continue, por favor. Estava tão bom.
Raquel revirou os olhos. Olhou para seu mais novo casulo.
- O sabor não estava tão bom assim. – Ergueu uma de suas patas e matou-o, perfurando-lhe a garganta. Tornou a andar na direção de Samanta: - Não odeia quando a comida fala?
Samanta soluçou, sem muito o que fazer. Não conseguia mexer as pernas, sua visão estava turva e começava a sentir calafrios. Havia o cheiro de gás, que começara a sentir após bater contra a parede. Devo estar delirando.
- Humana idiota. – Raquel continuava a avançar devagar. – Deixe-me adivinhar, deve ser a mulher de um desses palhaços, não é?
Tentou se mexer, mas em vão. Não conseguiria fugir.
Morreria.
O cheiro de gás ficava cada vez mais forte, e Samanta pensou estar ouvindo um chiado.
- Sua espécie é tão patética. – Raquel desdenhava, o que deu a Samanta o tempo de que precisava. Tateou o chão e descobriu um tubo de gás, o que estava vazando. Deve ter se partido quando bati contra a parede. Raquel continuou: – Tão cheios de si e ainda tão sentimentais. Admira-me que tenham evoluído tanto.
Samanta segurou aquele tubo como se sua vida dependesse disso. Preciso de fogo.
Tateou o bolso, por estar nervosa.
Fogo!
- Não me alimento de mulheres. – Estava perto agora, poderia matá-la facilmente. – Mas algumas de minhas filhas já estão em idade para experimentar.
Raquel abaixou-se, aproximando seu rosto do de Samanta.
- O que acha disso? – Sorriu. - Minhas filhas vão gostar.
- Vai pro inferno, sua puta.
E acendeu o isqueiro.

O incêndio foi o maior que a cidade já havia visto. Quando os bombeiros chegaram, as chamas já estavam fora de controle.

Lutara como nunca antes, mas estava, enfim, livre. Ergueu-se na rua, longe do fogo, e deixou que a chuva refrescasse as queimaduras.
Não sabia o que havia acontecido. Estava no quarto, dormindo com suas irmãs, quando o fogo as alcançou. Parte do telhado desabou sobre o quarto, prendendo-as num inferno ardente.
Mas ela tinha garra. Era a mais esperta, como sua mãe sempre dizia. Arrastou-se em meio às chamas, ao som dos gritos das irmãs. Algumas pediram por ajuda, é claro. Mas não era de sua natureza ajudar.
Ergueu o rosto para a chuva, era uma sensação boa. Era bom estar viva.
Ouviu a sirene dos bombeiros, ao longe. Não tinha muitas opções.
Escondeu as quelíceras e dois pares de olhos. Quase esqueceu as patas de aranha, mas conseguiu encolhê-las também.
A vida seria diferente de agora em diante.

Mas a garotinha sabia o que fazer.

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