quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

A Queda de Arcádia - Capítulo 4

Saudações, aprendizes! Neste post, mais um capítulo do projeto A Queda de Arcádia.
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Banquete em Lago Mardul

A última parte da viagem foi a mais difícil para Rastler. Um banquete em Lago Mardul, no castelo de lorde Leonard, um dos favoritos de Lucian. Isso por si só não era problema nenhum. A grande dificuldade seria rever aquela pessoa.
- Lembra-se de Lago Mardul, primo? - Perguntou-lhe Lucian, ao entrarem pelos portões da cidade. Cavalgavam lado a lado.
- E poderia ter esquecido? - Manteve o sorriso, embora este lugar lhe trouxesse a lembrança de mil espadas a perfurar-lhe o coração. Foi aqui que desisti, não pode deixar de pensar. Foi aqui que abandonei minha herança e meus graus de cavalaria. Meus amigos e minha família. E, acima de tudo, desisti de Jeren Mardul. Mas não diria isto ao primo. Haviam certos limites quando se falava com um príncipe, mesmo que fosse um maldito bastardo de coração negro como Lucian. - O torneio há cinco anos. Você derrubou todos os justadores, e sagrou-se cavaleiro.


- Quase todos. - Lucian o olhou profundamente. Aquele olhar frio que faz qualquer um sentir que está caindo num abismo dentro de si mesmo. - Você seria um cavaleiro também se não tivesse fugido. Sempre foi melhor do que eu em qualquer tipo de combate. Poderia ter sido um campeão.
- Está exagerando. Além disso, uma derrota mancharia seu nome. - Mentira. Ele não sabe. Ainda me trata como seu melhor amigo, sem saber que eu o teria matado naquele dia.
- Besteira. Nasci um bastardo, com o nome mais manchado que poderia ter tido. - Lucian sorriu, aquele seu sorriso pálido e sem vida. – Isso vai mudar.
E o príncipe negro apressou o galope para colocar-se à frente do grupo, e ser o primeiro a alcançar o castelo. Rastler ficou pensando nas palavras do primo: Isso vai mudar.
Bastou Lucian se afastar um pouco para a confusão começar:
- Controle seus animais, Raslter. - Lorde Leonard apressou seu galope para emparelhar com Rastler. – Minha cidade não é um chiqueiro de porcos.
Rastler sequer precisou responder. Darl Boca Suja fez isso por ele:
- Porcos que salvaram esse seu rabo empinado em Granlago, senhor do lago de merda.
Os mercenários riram alto. Lorde Leonard não gostou de ser motivo de troça.
- Não dirigi a palavra a você, mercenário. - Seu rosto sardento estava tão vermelho quanto seus cabelos. - Se seu capitão não tem peito para me responder à altura, é porque colocou-se no seu lugar. Sugiro que faça o mesmo.
- Lorde Leonard. - Chamou Rastler. Estava cansado das provocações dos cavaleiros negros. - Com todo o respeito, senhor. Vai pra merda.
- Eu teria mais cuidado com a língua se fosse você.
- Não, milorde. - Rastler mantinha-se calmo. - Cuide-se você. Insulte meus homens mais uma vez, e arrancarei sua língua. Na frente do Rei, se for preciso.
- Está me ameaçando?
- Não me entenda mal. Não faço ameaças. Isto é uma promessa.
- Vai se arrepender disto, maldito. - E lorde Leonard apressou-se para alcançar o Lucian e os portões do castelo
- S-senhor... - Gaguejou um garoto que vinha logo atrás de Rastler, que parecia mal suportar o peso da armadura. No entanto, era o jovem mais promissor no acampamento, segundo Darl. – Aquele não é o senhor destas terras? Foi sensato falar com ele desta forma?
- Aí está algo que tem de aprender, Dallas. - Explicou Rastler ao garoto. - Nunca se rebaixe perante otários como aquele. Eles pisarão em você sem dó nem piedade se você deixar.
- Juro que um dia vou acertar esse aí em cheio, bem nas bolas. - Falou o Boca Suja.
- Espere até o torneio e terá a sua chance. - Rastler divertiu-se com o pensamento. - Vou lhe cobrar isto.
A cidade era exatamente da forma como se lembrava, com grandes e pequenas casas de madeira erguidas ao redor da água. A leste do lago, o castelo erguia-se poderoso, e sua muralha circundava toda a área nobre da cidade. Um jovem cavaleiro os esperava nos portões do castelo. Os cabelos cor de fogo denunciavam seus traços Mardul. Filho de Leonard? Sabia que não. Filho de Lucian e... Sacudiu a cabeça e afastou o pensamento. O jovem trajava armadura completa e montava seu cavalo de guerra, e trazia ainda uma escolta de mais de quarenta homens armados. Tudo isso para receber o príncipe negro.
Os bastardos sangrentos foram alojados no pátio do castelo, em tendas e pavilhões improvisados. Era certo que a casa Mardul não esperava por mercenários, e o pequeno grupo de Rastler atraiu todos os olhos do castelo sobre si. Até mesmo os cavaleiros menos importantes da tropa de Lucian receberam quartos de hóspedes no castelo, assim como todos os senhores do rio. Claro que isso não incomodou o capitão dos bastardos.
O festim se iniciou ao anoitecer. Das tendas no pátio podia ouvir-se a música vinda do salão de Lorde Leonard.
- Que hospitalidade... - Comentou Henrik, que bebia um grande caneco de cerveja. Mesmo sem ter acesso ao interior do castelo, os mercenários foram atendidos com comida e bebida em abundância. - Eles tem a festa deles e nós temos a nossa.
- Acho bom. - Disse Shayra, enquanto devorava um majestoso pernil, sem cerimônias. - Eu não gostaria de estar no meio deles.
Rastler sabia que era verdade. Shayra Raardan era uma bárbara das montanhas do dragão, e embora eles fossem bons vassalos do Rei, seus costumes eram completamente incompatíveis. Em primeiro lugar, estava o fato de ela ser mulher. As mulheres do reino não lutavam em batalhas. Pelo menos não as mesmas batalhas que os homens. Não havia dúvidas de que o nome do pai dela lhe garantiria um lugar no banquete. O Clã Raardan comandava as montanhas desde antes de se submeterem à coroa.
- Tolice. - Darl Boca Suja já havia bebido demais, e tudo o que saía de sua boca era zombaria. - Tem medo de arrumar um marido, isso sim. Algum corajoso para te domar.
- Por que não tenta, velho? - A mulher largou seu pedaço de carne e levantou-se, ameaçadoramente. Se tomasse um banho e vestisse roupas de mulher, talvez Shayra se tornasse agradável aos olhos. Larga de ombros e quadril, mais de um metro e oitenta de mulher sob uma cota de malha suja e rasgada. Os cabelos caíam até a cintura, louros, volumosos e embaraçados. Muitos homens em campanha não ligavam para beleza ou higiene, e investiam em qualquer coisa mais ou menos feminina. Na primeira noite em que estivera com os bastardos Shayra matou dois homens que passaram dos limites, e aleijou um terceiro, posteriormente executado por Rastler. Embora não tolerasse tal comportamento de seus homens, o comandante jamais a teria aceitado se ela não soubesse se defender. Andou até o velho e desafiou-o novamente: - Levanta. Vem me domar, velhote.
- Cala a merda dessa boca, menina. - Darl riu e bebeu mais um gole. - Consigo coisa melhor. E sem ter que lutar.
- Aceito seu desafio, Shayra. - Ron se levantava, tirando o cinto da espada e deixando-o sobre a mesa. Ao contrário do Boca Suja, estava sóbrio. - Sem armas, apenas punhos. Se eu vencer, você é minha.
- E se eu vencer? - A mulher virou-se para o jovem guerreiro. - O capitão gosta de você, então não vou poder te matar. Mas uma boa surra não fará mal a ninguém.
- Essa eu pago para ver. - Rastler sorriu, e bebeu um longo gole de seu vinho. Ron, seu desgraçado viciado em mulher. - Aposto duas moedas de ouro na Shayra.
- Apostado. - Henrik, o arqueiro, colocou duas moedas sobre a mesa. - Sinto muito, capitão, mas levarei seu ouro. Ron vai detonar ela.
Num primeiro momento Ron expressava incredulidade para com seu capitão. Um segundo depois expressou dor quando o punho de Shayra o atingiu na boca do estômago, fazendo-o se curvar e recuar alguns passos.
- Só isso, leoa das montanhas? - Provocou-a, levantando-se e tomando um pouco de ar. - Pensei que batesse mais forte.
Ela investiu novamente, com ainda mais agressividade. Ron conseguiu defender-se de três socos na direção do rosto, mas foi atingido por um quarto golpe na lateral da cabeça. Cambaleou novamente.
- Maldito! - Gritou Henrik. - Vai me fazer perder duas moedas.
- Pode não parecer, mas ele sabe o que está fazendo. - Interveio Rastler. - Ele a está cansando.
E era verdade. Shayra era uma cabeça mais alta do que o mercenário, e visivelmente mais pesada. Ele deixava-a atacar, e usava sua agilidade para defender-se da maioria dos ataques. Quando ela estivesse exausta, ele atacaria. Foi quando ela pôs toda a sua força num cruzado de direita que ele esquivou-se e chutou-lhe as pernas, derrubando-a de joelhos. Agarrou-lhe os cabelos com a mão direita e levantou a esquerda para bater.
E foi aí que a coisa ficou feia.
Talvez ele a tivesse subestimado. Talvez não tenha considerado que ela já tenha passado por todo o tipo de peleja. Shayra o abraçou com força pela cintura e levantou-se de uma vez, erguendo-o do chão por alguns instantes. Caíram sobre uma mesa, derrubando toda a bebida e espalhando comida por todos os lados. Os mercenários levantaram-se para abrir espaço, enquanto os dois rolavam aos socos.
- É forte essa cadela, não? - Riu-se Boca Suja, enrolando a língua. Os bastardos sangrentos gritavam e torciam, comiam e bebiam
- N-não é melhor separá-los, s-senhor? - Perguntou Dallas, o garoto gago.
- Pode tentar se quiser, mas eu não o aconselho a fazer isso. Deixe que se conheçam melhor. - Levantou-se e alcançou duas moedas de ouro para o garoto. - Cuide da minha aposta.
O rapaz assentiu e Rastler deixou a tenda, que fervia aos gritos enlouquecidos de seus bagunceiros. Andou até os estábulos, onde encontrou um canto escuro para aliviar-se do vinho. Levantou os olhos para o castelo, e ouviu a música por alguns instantes. Poderia estar lá, mas não aguentaria. Droga, Rastler. Quinze anos e você não a esqueceu. Fugiu para esquecê-la, e voltou porque julgou ter conseguido. Mas agora via ser impossível.
- Tem um grupo bem interessante. - Rastler virou-se de um salto, e a primeira impressão que teve foi de que bebera além da conta. Mas percebeu haver realmente alguém ali, parado há apenas alguns metros dele, sob uma capa que esvoaçava ao vento da noite. - Pensei que jamais o veria de novo, meu amigo.
- Sir Trebane. - O capitão mercenário cumprimentou-o. Não havia como não reconhecer aquela voz. Andou até o recém chegado. - É um prazer revê-lo, senhor.
- Deixe-me dar uma boa olhada em você, rapaz! - O velho adiantou-se, e então Rastler pode ver seu rosto. Sardento e envelhecido, olhos azuis e cabelos ruivos que já começavam a rarear no alto da cabeça. Os típicos traços Mardul. Segurou-o firme pelos ombros e sorriu. - Parece forte como um touro!
- O senhor também não me parece mal. - Realmente era bom rever aquele velho. Sir Trebane fora um dos mestres responsáveis pela sua educação, e devia muito a ele.
- Esperei por você no banquete, mas não apareceu. - Falou o cavaleiro, num tom triste. - É a segunda vez que o vejo fugir. Posso garantir que não o ensinei isso.
- Desculpe pela minha ausência hoje. Mas festins não combinam comigo.
- Já que não foi até o salão, eu vim até você. Caminhe comigo, Rastler. - O velho virou-se e pôs-se a andar, com o mercenário a acompanhá-lo. - Capitão mercenário?
- É uma boa forma de se ganhar a vida hoje em dia, se me permite dizer. Há guerras por todos os lados.
- E agora pretende vender sua espada ao Rei? - Perguntou o cavaleiro, num tom de desaprovação.
- Não. Voltei a Arcádia porque este país é a minha casa. Minha espada está a serviço do Rei desde o meu retorno, embora nenhum contrato tenha sido feito.
- Eu soube do que fez na Vigia do Leste. - Sorriu e balancou a cabeça. - Posso dizer que estou ao mesmo tempo orgulhoso e desapontado. Quebrou sua palavra. Não lembrava de ter treinado um vira casaca.
- Entristece-me ouvir isto do senhor. - Rastler conhecia Sir Trebane muito bem. Um demônio no campo de batalha, mas de uma honra inquestionável. - Alguém tem que fazer o trabalho sujo de vez em quando. E pelo que sei, se não fosse pela minha virada de casaca o herdeiro do trono de Arcádia estaria morto agora. Ou coisa pior.
E era verdade, não importava o quanto sir Trebane Mardul estivesse disposto a discordar. Rastler estava a serviço do Imperador de Iskarish, um vasto império à leste e sudeste de Arcádia. O plano era atacar a Vigia do Leste, defendida pelo príncipe Ricard de Rasíris, o herdeiro do Rei Teobald. O ataque seria uma distração. Enquanto isso, uma frota de vinte navios atracaria ao norte da Vigia e lançaria um arrasador ataque às defesas do príncipe, que estariam ocupadas. Os bastardos sangrentos tripulavam o primeiro navio e constituíam a vanguarda. Teria sido o fim do herdeiro de Arcádia, se não fosse por alguns detalhes. Rastler comprou mais da metade dos capitães e sabotou o ataque surpresa. Atracou sozinho com seus bastardos sangrentos e, quando entrou na batalha, lutou por Arcádia.
- Por isso disse também que de certa forma fiquei orgulhoso. Posso não aprovar o que fez, mas aprovo sua lealdade a sua família e ao seu país. Este é o Rastler que eu conheço.
- Espere até ver o que não conhece. - Riram. A esta altura já não estavam mais no pátio, e caminhavam pelo interior do castelo. Sabia que o cavaleiro não o levaria até o salão, então não se importava. - O verei no torneio?
- Estarei lá, mas não vou competir. Meu tempo já se foi. Deixo a glória do torneio para os jovens.
- Então não haverá a menor graça. Voltei a este país após quinze anos e o que encontro? Jovens cavaleiros de nariz empinado, que se borram perante uma parede de escudos.
- Não diga isso, meu amigo. - O velho refletiu por alguns instantes. - Embora em partes talvez eu deva concordar. A verdade é que há cavaleiros e há cavaleiros, se é que entende o que eu quero dizer. Vejamos por exemplo o meu sobrinho...
- Lorde Leonard.
- Isso. - respirou fundo. - Eu não deveria estar dizendo isto, mas sinto pena do povo de Lago Mardul desde o dia em que aquele cabeça de vento se tornou lorde. Aquele homem não tem noção nenhuma de nada. Se ele não mudou até hoje, receio que as esperanças estejam perdidas.
- Talvez uma boa surra, o que acha?
- Talvez. Embora eu acredite que nem todas as surras do mundo poderão ajudá-lo.
Riram. Rastler perdera a noção do quanto andaram, e percebeu estar subindo por uma escada circular.
- Espere um pouco. - Diminuiu o passo. - Para onde exatamente está me levando?
- Suponho que tenha um palpite.
Não. Por favor não. Mas não diria isso. Não demonstraria medo. Sentiu-se logrado, nada mais. Eu deveria ter imaginado. Sir Trebane Mardul, guardião de Jeren Mardul. Era assim desde que éramos crianças, em Rochaforte. Não. Aquela Jeren Mardul não existe mais. Já faz quinze anos.
O velho parou em frente a uma porta, no alto das escadas.
- Está preparado? - E abriu a porta, revelando um aposento circular. Aqui é uma das torres de observação. Da janela dava para ver todo o lago, negro contra a noite. Alguém o esperava lá.
Linda, como sempre. Os longos cabelos ruivos estavam trançados. Rosto sardento e olhos azuis. Os quadris mais largos desde a última vez. Aquele belo rosto maravilhoso de sempre. Sentiu que sua cabeça explodiria. Eu a amo. Amo. Amo. Não, Rastler, seu maldito idiota. Você fugiu, lembra? Há quinze anos. Você a abandonou, quando ela mais precisou de você. Deixou que ela casasse contra sua vontade. Se ao menos o tivesse matado. Só você poderia... Pensou em inúmeras coisas para dizer. Eu a amo. Amo. Amo. Mas o que saiu de sua boca:
- Você deveria estar no banquete. - Duro e frio como uma pedra. - O que o senhor seu marido diria se fosse vista por aqui?
- Lucian não parece se importar com o que faço ou deixo de fazer. - Falou sem cerimônias. Estavam a menos de dois metros um do outro, e Rastler segurava-se para não beijá-la e amá-la. - Além disso tenho um ótimo cúmplice, não é, Tio?
- Às ordens, minha senhora. - O velho cavaleiro permanecia à porta.
- Esperei por você no banquete. Mas vejo que continua fugindo.
- Não fugi. - Dói. Está me matando, mulher. Sentia-se novamente um garoto. Um garoto que foi pego roubando tortas na cozinha. - O que queria que eu tivesse feito? Queria que eu tivesse matado meu próprio primo? Sabe que somos como irmãos.
- Não importa mais, Rastler. - Uma lágrima escorreu-lhe pelo rosto sardento. - Você não pode mudar nada. Você teve a chance e não o fez. Me deixou. Me abandonou.
Deu dois passos para a frente e o beijou. Rastler a abraçou e beijou-a com todas as forças. Como é doce.
E, por alguns segundos, o mundo era seu.
Mas o beijo terminou tão rapidamente quanto começou. Jeren recuou, os olhos cheios de lágrimas.
- Eu só queria saber... - Passou as mãos no rosto e secou as lágrimas. - Já não é mais a mesma coisa.
Apressou-se e saiu.
- Sinto muito, Rastler. - Falou sir Trebane, e saiu atrás da sobrinha.
Mil infernos. Não poderia ter sido pior.




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