quinta-feira, 3 de março de 2016

A regra do ouro

Arte por Nicole Cardiff/thegryph - DeviantArt



  Estava entediado. Era sempre um tédio no seu turno da guarda. "Como se alguém fosse aparecer". A entrada do esconderijo ficava atrás das colinas, numa reentrância que permitia que o guarda pudesse ver qualquer intruso se aproximar.
  Colocou mais lenha na fogueira. Se alguém passasse na estrada veria a fumaça por detrás das colinas, mas não importava. Ninguém passava naquela estrada tão tarde da noite.
  Largou o machado e sentou-se. Duas garrafas de hidromel o aguardavam.
  Saboreou a primeira. "Muito melhor do que aquele vinho de Edeni". Os edenianos que os haviam contratado bebiam um vinho tão vermelho que parecia sangue.
  "O vinho deles pode ser ruim, mas o ouro é tão bom quanto qualquer outro". Sentia-se bem. Estava recebendo oito moedas por dia, o dobro do que qualquer mercenário nas redondezas.
  "Ao ouro edeni". Ergueu a garrafa, brindando consigo mesmo, feliz.
  Até que uma flecha atravessou-lhe a garganta.



  Ar'fael colocou uma nova flecha no arco e esperou. De seu esconderijo, sobre as árvores, viu o guarda agonizar até a morte.
  Esperou um pouco mais, para o caso de algum outro mercenário ter escutado a morte do companheiro. Depois de alguns minutos, resolveu que era hora de se aproximar.
  O mercenário jazia ao lado da fogueira, e sua mão ainda segurava uma garrafa de vinho. Fael abaixou-se e recuperou a flecha. Reparou no rosto do homem. Já o havia visto antes, nos salões do Jarl Harald. Era apenas mais um mercenário dentre tantos os outros que vendiam suas espadas na cidade das cachoeiras.
  Uma inspeção rápida no corpo foi o suficiente para alcançar a bolsa de moedas. Não era muito gorda, mas três moedas eram sempre três moedas.
  Levantou e aproximou-se da porta do esconderijo. Era de madeira, e não estava trancada. Entrou o mais silenciosamente que pôde.
  O primeiro corredor descia. Fael manteve o arco a mão o tempo todo. Esperava encontrar mais mercenários. Os edeni certamente contrataram um grupo grande. Encontrou três armadilhas em sua descida, mas sabia como evitá-las.
  Estava acostumado com esconderijos e masmorras. Sua sobrevivência consistia basicamente em evitar armadilhas. E, principalmente, não ser visto.
  Ar'Fael fora um caçador em sua juventude, o que lhe rendeu algum conhecimento sobre armadilhas. Também aprendera a fazer um uso eficiente do arco.
  Mas a caça pagava pouco, o que motivou o meio elfo a buscar um novo tipo de presa. A vida de um caça prêmios era muito mais lucrativa, como logo veio a descobrir.
  O corredor terminava numa espécie de salão amplo. O esconderijo era todo encavado na pedra, no coração das colinas. Fael manteve-se na sombra.
  Havia uma fogueira no centro do salão. Fael contou pelo menos cinco mercenários, embora três estivessem adormecidos. Dois estavam sentados ao redor da fogueira.
  O meio elfo colocou uma flecha no arco e esperou.

  -O idiota levantou o escudo na frente dos olhos. - Riu, e bebeu um generoso gole. - Enfiei o punhal na barriga dele.
  Berhal forçou a risada. Isolda já havia bebido demais, e tornava a contar aquela história. Estava cansado de saber sobre seu último duelo. No entanto, preferia que a mercenária estivesse com ele ao redor do fogo do que qualquer um dos outros. Isolda era agradável de se olhar, pelo menos.
  Observou-a contar outra história repetida, sem prestar a menor atenção. Deixou-a secar a garrafa e ofereceu-lhe outra. Isolda não era nenhuma donzela, mas Berhal achou que poderia se aproveitar de sua fraqueza pelo vinho.
  Quando ela passou do estado tagarela para o risonho, Berhal pensou: só mais um pouco.
  Um assobio rápido e uma espetada.
  E Berhal não pensou em mais nada.

  Fael saiu da sombra. Já tinha outra flecha no arco antes que o mercenário caísse no chão. Avançou em direção à fogueira, para a mulher que se levantava.
  Ou tentava se levantar, na verdade. Um flecha no meio do peito fez com que se sentasse novamente. Desabasse, na verdade.
  Um pouco de sorte, afinal. Não esperava matar os dois sem acordar os demais. Os três dormiam sem qualquer suspeita do que estava para acontecer.
  O meio elfo largou o arco e pegou um longo punhal, levemente recurvo. Não gostava de cortar gargantas, mas o trabalho exigia. Eltria teria que lhe pagar um extra...

  Eltria era a dona uma hospedaria, há três dias da cidade das cachoeiras. Ar'fael era um de seus clientes mais antigos e regulares. O meio elfo tinha um quarto na hospedaria, em troca da carne de caça que ele trazia.
  Havia cinco anos era assim.
  Fael estava no bar, no seu canto escuro de sempre, afastado do balcão. O meio elfo não era de falar muito, e Eltria achava isso bom. Ela mesma tinha o que esconder.
  Naquela noite, ouviu dois de seus clientes conversando no balcão:
  -Acabei de voltar da cidade das cachoeiras. Há dois soldados dos edeni lá, fazendo perguntas.
  -Dois edeni? É meio longe pra eles, não?
  -Parece que estão procurando por uma mulher. Uma tal Irina ou algo assim. Uma fugitiva edeni.
  Eltria sentiu um arrepio subir-lhe pela espinha. Não tirou aquilo da cabeça, e não saberia dizer como foi que, naquela noite de movimento, atendeu a todos os clientes. Se segurava para não tremer dos pés à cabeça.
  Esperou que todos fossem embora ou se retirassem para seus quartos. Quando fechou a hospedaria, resolveu subir ao quarto de Fael.
  Bateu à porta. O meio elfo demorou a atender. Quando a abriu, tinha um punhal na mão.
  -Ah. É você. - Guardou a arma. - Entre.
  -Desculpe incomodá-lo. - Tremia. - Fael, não sei mais a quem recorrer.
  Fael esperou que Eltria entrasse e fechou a porta.
  -O que houve?
  -Ouviu os rumores no bar, hoje?
  -Alguma coisa. - O meio elfo sentou-se numa cadeira, e ofereceu outra. - Os sussurros no salão do Jarl ou os soldados edeni?
  -Os soldados edeni. - Eltria sentou-se. Mexia compulsivamente as mãos de tão nervosa. - Fael, por favor, eu imploro, me ajude.
  -Explique isso melhor, Eltria. O que tem para temer esses edeni?
  -Sou um deles. - Disse, por fim. Se precisava da ajuda de Fael, teria de confiar nele. - Eu era. Nasci como Irina da Lua Vermelha, na nobreza de Edenia. E eles estão atrás de mim.
  -Os edeni não viriam tão ao longe no oeste por pouca coisa. O que foi que você fez?
  -Há alguns anos, houve uma guerra civil em Edenia. Fui uma das principais apoiadoras da resistência, o que trouxe desgraça para minha casa. Fiz coisas das quais não me orgulho. - Olhou para o chão. Era difícil encarar Fael. - Quando fomos derrotados, fugi para evitar a forca. Fui tola em pensar que não me encontrariam aqui.
  Esperou que Fael dissesse algo, mas o meio elfo sequer abriu a boca. Ás vezes era extremamente difícil decifrá-lo. Ele era um caçador, mas Eltria sabia que ele já havia prestado serviços mais... específicos.
  -O que quer que eu faça? - Fael adiantou-se na cadeira e olhou-a no fundo dos olhos. - Sou um caçador, não um assassino.
  -Eu posso pagar. - Disse, pensando não haver outra alternativa. - Tenho ouro escondido, o suficiente para viajar e abrir outra hospedaria, se necessário. Esses soldados edeni tem de sumir.
  Fael se levantou. Começou a vestir sua armadura de couro.
  -Sabe que eu posso entregá-la. - Disse, enquanto colocava as botas. - Por que confiar em mim?
  -Não importa quanto esses soldados edeni paguem pela informação. Eu posso pagar mais. - Deu um sorriso, tentando esconder o nervosismo. - Eu cobrirei qualquer oferta que eles farão.
  -Bom saber disso. - Pegou a aljava de flechas e o arco. - Cidade das cachoeiras, você disse?
  -Sim.
  -Devem ter ido até lá contratar mercenários. Provavelmente estão escondidos em algum outro lugar. - Dirigiu-se a porta. - Espere por mim aqui, e não pense em fugir. Vou querer o meu ouro.
  E Eltria viu Fael sair obstinado.
  Tinha uma caçada, afinal.

  Os mercenários garantiram um bom espólio. Vinte moedas de ouro, dois punhais novos e um par de botas que serviu perfeitamente. Um deles ainda tinha uma aljava cheia de flechas. Não eram tão boas quanto as que Fael fazia, mas teriam algum uso. Espadas, machados, escudos e armaduras eram coisas com as quais não se importava. As armas tinham pouco valor de venda, e as armaduras eram pesadas demais. Não valia a pena carregar esse peso extra.
  Deixou a antecâmara por um corredor na parede oposta àquela que entrou. Moveu-se silenciosamente, com sua flecha já preparada. Parou ao ouvir vozes:
  -...nas redondezas da cidade, mas até agora nada.
  -Ela só pode estar por aqui. Todas as pistas nos trouxeram para cá. Não podemos partir de mãos vazias.
  Fael esgueirou-se para ver. Um novo salão se abria sob as colinas. Era bem mobiliado, com armários, camas, mesas, cadeiras e uma fogueira no centro. Esse esconderijo deve pertencer aos mercenários. Os edeni são hóspedes aqui.
  Ao lado da fogueira, os soldados edeni comiam à mesa. Eram dois, como Eltria havia dito. Suas armaduras negras os denunciavam como oficiais do alto escalão de Edenia. Junto a eles havia mais um homem, provavelmente o líder dos mercenários. Era alto e forte, com uma cabeleira desgrenhada que se misturava à barba e o fazia se parecer com um grande urso. quando falou, sua voz era um trovão:
  -Posso colocar dois homens para vasculhar as redondezas. Fazer perguntas, esse tipo de coisa.
  -Não. - Um dos edeni falou. - Preciamos de seus homens para a nossa proteção. Irina é astuta. Se estiver por perto já deve saber que estamos aqui.
  Fael considerou sua opções. Os edeni trajavam suas armaduras negras. Embora leves, tinham poucos pontos desprotegidos. O meio elfo não conhecia essas armaduras, e não saberia dizer se uma flecha as atravessaria. Conseguiria matar um devido ao elemento surpresa. Dois, se fosse rápido e tivesse a sorte de que o outro não fosse um mago.
  Além disso, havia o mercenário com que se preocupar. O homem trajava armadura pesada, o que seria um problema.
  A não ser que...
  Fez pontaria. Esperou pela hora certa.
  E disparou.

  Eltria fechou o bar tarde da noite, como de costume. Há quatro dias não tinha notícia de Ar'fael. Começava a ficar nervosa.
  Revisou as trancas de todas as portas, mais de uma vez. Como se isso fosse me proteger. Estava preparada para fugir, se fosse necessário. Poderia ir para o norte, o máximo que pudesse, até os salões gelados do Jarl Thareen. Aquelas estradas eram longas e inóspitas, e uma hospedaria por aquelas bandas seria uma boa alternativa.
  Custou a dormir, revirando-se para todos os lados e suando frio. Quando finalmente adormeceu, foi desperta por batidas na porta do quarto.
  -Eltria, abra a porta, rápido! - Era a voz de Ar'fael, parecendo ofegante. - Eltria!
  O meio elfo entrou apressado no quarto. Estava com um dos braços ocultos pela capa manchada de sangue.
  -O que aconteceu?
  -Eles estão vindo. - Olhou rapidamente pelo quarto. - Pegue tudo o que precisar. Vamos partir.
  -O quê?
  -Rápido, Eltria. - Nunca vira Ar'fael tão preocupado. - Consegui atrasá-los, mas eles chegarão antes do amanhecer.
  Eltria atravessou o quarto rapidamente até o esconderijo ao lado da cama. Abriu o cofre e retirou seu último, porém gordo, saco de moedas.
  -Só preciso disso. - Disse, mostrou a recheada bolsa ao amigo. - Vamos precisar de cavalos e...
  -Já estão lá embaixo, os mais rápidos que pude arranjar. - Fael abriu a porta do quarto e saiu. - Se nos apressarmos, poderemos cruzar o rio Kros antes do amanhecer.
  Saíram para a rua e para a noite, e Eltria virou-se para dar uma última olhada na sua hospedaria.
  -Os cavalos estão lá atrás. - O meio elfo puxou-a pela mão, encaminhando-se para os fundos.
  Eltria já não estava tão nervosa quanto antes. Ao menos estava fugindo. Ar'fael a ajudaria.
  Encontraram os cavalos nos fundos da hospedaria, mas não como Eltria esperava.
  -Mas o quê? - Perguntou quando um punhal tocou de leve sua garganta.
  -Mova-se e morrerá. - Disse o soldado edeni, saindo das sombras. - É ela?
  -Sim. - Respondeu o Grande Irmão Akhron. - Irina da Lua Vermelha.
  -Akhron da Árvore Branca. - Conhecia-o. - Não pensei que fosse me encontrar.
  -Confesso que tive ajuda.
  Não acreditava no que estava acontecendo. Olhou para Ar'fael. O meio elfo mantinha sua expressão enigmática de sempre. Grande Irmão Akhron então alcançou-lhe uma generosa bolsa de moedas.
  -Prestou-nos um grande serviço, mestiço.
  -Desgraçado. - Eltria olhava para Fael com nada além de ódio. - Disse que cobriria qualquer oferta.
  -O que me faz lembrar disto. - O meio elfo adiantou-se e tomou a bolsa das mãos dela também. - Agora tenho duas recompensas. E uma hospedaria.
  Eltria cuspiu no rosto do meio elfo. Ele apenas sorriu:
  -Boa noite, Eltria. Aproveite a viagem.
  E se retirou.
  Uma pancada atrás da cabeça fez com que Eltria desmaiasse.

  Fael cavalgara por dois dias a fio, apenas para encontrar um ponto estratégico à frente de seu alvo.
  Estava sobre um rochedo, com o sol nascente às suas costas, de modo que quem passasse na estrada e tentasse vê-lo seria ofuscado.
  Sentou e esperou. Eles estão perto.
  Viu dois cavaleiros virem pela estrada. Um deles carregava algo volumoso e desajeitado.
  Como um corpo desacordado.
  Pôs uma flecha no arco e esperou que se aproximassem. Tivera a chance de estar perto deles. De estudar as fraquezas da armadura.
  Agora sabia onde atirar.
  A flecha voou. Um tiro certeiro e um soldado edeni no chão.
  O outro se assustou. Tentou encontrar o assassino, mas Fael tinha o sol como aliado.
  Mais uma flecha, mais uma morte.
  Desceu do rochedo, para os cavalos que pastavam ao lado da estrada. Os dois edeni estavam mortos, cada um com uma flecha na cabeça.
  Foi até o cavalo que carregava o volume e tirou o pano que o cobria.
  -Vamos, Eltria, acorde. - Estava desacordada e amordaçada. Deu alguns tapas no seu rosto. - Vamos, acorde.
  Eltria abriu os olhos. Ele a desamarrou e retirou a mordaça. Ajudou-a a descer do lombo do cavalo.
  -Seu desgraçado. - Disse ela, alongando-se. Dois dias sendo transportada daquela forma tinha seus efeitos sobre o corpo. - Que ideia foi essa?
  -Vou levá-la de volta à nossa hospedaria.
  -Podia ter me avisado.
  -Teria concordado?
  -Não.
  -Exatamente por isso. Agora estamos muito mais ricos. - Fael sorriu. Nunca tivera tanto dinheiro antes.
  A vida como caça prêmios era muito lucrativa.

2 comentários:

  1. Legal de ser mercenário é que sua lealdade está a venda... quando está afim de vende-lá.
    Ótimo conto

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    1. Obrigado pela leitura!

      Foi um conto muito divertido de escrever, gosto de escrever sobre mercenários!

      Abraço!

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