sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

A Joia do Reino - Parte II - Castigos & Ladrões

Saudações, aprendizes! Vamos ao segundo capítulo...

Se você ainda não leu o primeiro, pode fazê-lo clicando aqui.




A Joia do Reino - Parte II - Castigos & Ladrões

Aquele belo dia ensolarado logo se transformou numa noite agradável, refrescada pela brisa que entrecortava as torres e prédios da academia. Sobre a biblioteca, o céu repleto de estrelas não dava mais sinal da fumaça de mais cedo. A única prova que ainda resistia da algazarra era o cheiro de queimado, resultado da queima de volumes mágicos de valores quase inestimáveis.
E, sentada já a algumas horas na sala do reitor, Vicky aguardava o que esperava ser o maior castigo da história da academia.
Ou do reino.
Era uma especialista em castigos, diga-se de passagem. Muitos alunos diziam pelos corredores que não haveria mudança da lua se Victorya não aprontasse e pagasse o preço.
O problema, e a maga estava consciente disto, era que ninguém nunca havia sido mandado diretamente ao reitor. Pelos menos nunca ouvira falar de tal medida corretiva.
Esperava por uma expulsão. Seria a única dos últimos cinquenta anos, e entraria para o painel da vergonha no salão principal ao lado de Angarion, o Idiota, que acreditava cegamente que poderia usar magia de cura à distância por meio de flechas encantadas.
Sacudiu a cabeça e afastou tal pensamento. Sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha. Em parte por medo. Em parte por ainda estar com as vestes molhadas, resultado do feitiço da bibliotecária.
Seria fácil secar-se. Bastava conjurar seu cajado, dizer algumas palavras e pronto: roupas secas. Mas segurou-se. Temia que algo ainda pudesse dar errado. Havia uma lei metamágica que dizia que tudo sempre poderia piorar, independente da perícia ou grau de poder bruto envolvido.
Respirou fundo. Parecia estar ali sentada há dias. O escritório do reitor era amplo e bem iluminado, e insuportavelmente bem organizado e alinhado, dando a impressão de que, se algo fosse tirado do lugar, ganharia vida e atacaria.
A porta se abriu, despertando-a de seus devaneios.
Era o reitor. Um mago velho e esquelético, sem barba ou qualquer outro tipo de pelo na cabeça, com um pescoço longo se projetando para fora do robe, dando-lhe o aspecto de uma tartaruga velha e sábia.
Trazia nas mãos um rolo de pergaminho encardido. Estudou-a por um longo momento antes de começar a falar:
– Boa noite, criança. – Desenrolou o documento e deu uma espiada. – Victorya, certo.
– Boa noite, s-senhor. – A voz não saiu com décima parte do efeito que desejara. Soara como se estivesse à beira do precipício, a um sopro da queda que seria a última.
– Deixa-me ver. – O velho andou arte sua mesa e sentou-se, terminando de desenrolar os documentos que trazia. – Está bem, vejamos... – Corria os olhos esbugalhados pelos papéis, e Vicky teve a impressão de que se divertia. – Hum... Ahãm... Ah!
Conhecia a reputação do reitor. Era um conhecido herói do reino. Atualmente aposentado da vida de aventuras, dividia seu tempo entre gerenciar a academia e aconselhar o rei.
No entanto, parecia uma figura meio patética. E este era o erro que noventa e nove a cada cem pessoas que o conhecia cometiam: julgá-lo tolo e senil.
– Agora, - Enrolou de volta o pergaminho. – Quero saber de você, Victorya, o que realmente aconteceu à tarde?
– Eu estava encarregada de guardar alguns livros. – Começou, sentindo a vergonha tomar conta conforme avançava. Olhava para o chão. – Me distraí e deixei um cair. Era o Bestiário de Alkalor, mestre. Então...
– Então já podemos começar agradecendo aos deuses pela nossa sorte. – Cortou-a. – Formigas atrozes são uma praga, mas se fossem aranhas d’último sono estaríamos agora com problemas para nos livrarmos dos corpos.
– Desculpe, mestre.
– Não se desculpe, pelo menos para mim. – Respirou fundo. – Mas receio que jamais será permitido que você entre na biblioteca enquanto madame Lenora for bibliotecária. Continue:
– Quando as formigas estavam tomando conta, resolvi conjurar fogo para lidar com elas. – Sentiu o rosto enrubescer. Na hora parecera uma boa ideia, mas agora a fazia se sentir envergonhada. – Sei que foi uma tolice.
– Diria que a maior tolice desde as flechas curadoras de Angarion, o Idiota. -
Falou aquilo de maneira cruel, para o desespero da garota. – Sinceramente, havia volumes naquela biblioteca que não poderiam ser encontrados em nenhum outro lugar do mundo. Livros tão raros e poderosos que reis entregariam suas coroas para tê-los em seu poder.
Fez uma pausa e tomou um pouco de ar. Depois continuou.
– O que aconteceu hoje aqui foi grave, Victorya. Quero que entenda isso. Nossa academia tem sido a mais respeitada de todo o continente desde a sua criação. E tínhamos a maior biblioteca.
– Eu sei, senhor. – Vicky concluiu, ainda de cabeça baixa. – Aceitarei a expulsão, mestre.
O reitor a estudou por um longo momento, depois concluiu:
– Não vou expulsá-la. – Apontou para o pergaminho. – Li aqui que suas notas são excelentes, e que é a melhor da classe em diversas disciplinas. É uma encrenqueira de primeira, senhorita Victorya, e um tanto cabeça de vento, mas acredito que com o direcionamento certo posso colocá-la na linha.
Não conseguia acreditar. Tomara a expulsão como certa.
– Conjure seu cajado. – Disse-lhe o mestre.
Com um estalar de dedos, Vicky fez o que lhe foi ordenado.
– Agora trate de secar essas roupas.
Poderes ocultos adormecidos e enterrados. – Entoou a garota. – Resolvam este meu problema dos trajes molhados!
E as vestes secaram.
– Magia das palavras. – O reitor sorriu de leve. – Isso é raro. Parabéns.
– Obrigado, senhor.
– Agora, seu castigo. – E estalou os dedos. O cajado de Vicky rachou e se despedaçou em mil pedaços e lascas. – Continue acompanhando as aulas, mas com suas capacidades drasticamente reduzidas.
Era um pesadelo. Vicky ainda precisava do cajado para fazer magias mais poderosas do que acender uma vela, por exemplo. Não conseguiria créditos práticos, o que atrasaria seus estudos.
– Por quanto tempo, senhor?
– Até eu julgar que você o merecerá de volta. – Sorriu. – Agora vá dormir. Amanhã você tem aula cedo.

***

Do lado de fora da academia, a cidade dormia. Na verdade, apenas parte da cidade dormia. A parte formada pelos trabalhadores honestos que, ao final de suas jornadas diárias, pensavam apenas no jantar e na cama, independente se a cama fosse de palha ou possuísse o mais caro dos colchões (embora, geralmente nos casos citados, camas simples de palha eram muito mais comuns...).
De forma que para aqueles envolvidos em negócios obscuros, a noite era uma criança.
Sendo assim, duas sombras esgueiravam-se pela cidade meio adormecida. Uma das sombras era esguia, em contraste da sua companheira, mais rechonchuda e com orelhas compridas.
Moviam-se como se fossem os donos da noite. E de fato eram.
Sombras, com um trabalho a fazer.
Pararam sob o muro da ala leste da academia.
– Chegamos. – Disse Izel, o mais magro dentre os ladrões. Ergueu a cabeça para inspecionar a altura do muro, fazendo seu capuz negro cair para trás. Se houvesse mais alguém presente além do companheiro, veria um rapaz jovem com cabelos escuros macilentos e desgrenhados, tão rebeldes que pareciam prestes a morder quem se aproximasse. – Não é tão alto quanto eu pensava. Dê-me a corda.
Niko, o homem coelho, remexeu na bolsa que trazia à tiracolo. Não usava capuz, pois as compridas orelhas não permitiam. De qualquer forma, possuía pelos tão negros quanto as vestes de ladrão, e tinha um talento nato para a furtividade, apesar dos quilinhos extras.
 – Temos um problema. – O homem coelho retirou uma trouxa de dentro da bolsa. – Isto está com um cheiro horrível.
Jogou no chão o que se revelou como vestes de ladrão imundas.
– E tem mais. – Havia mais três peças, agora espalhadas aos pés de Izel. – Você não lava suas roupas na guilda?
O rapaz suspirou. Havia pegado a bolsa errada de novo.
– São as roupas do último roubo. – Disse, sentindo as forças se esvaindo. – E do penúltimo.
Imaginem a surpresa na guilda dos ladrões quando, na manhã seguinte, a lavadeira abrir uma bolsa cheia de cordas e ganchos e facas e grampos e bombas de fumaça...
Abaixou-se e começou a juntar as vestes imundas. Começou a amarrá-las umas às outras: Uma perna numa manga noutra perna num manto e assim por diante.
– Isso é o que estou pensando? – Nico franziu o cenho. – Sei que as vestes são resistentes, mas...
– É o que temos. É isso ou voltar para casa.
– Então amarre bem isso aí. – O homem coelho revirou os olhos. – Sabe que não posso voltar de mãos vazias. Tenho doze bocas para alimentar em casa.
Riram. Izel conhecia a família de Nico. A esposa e os onze filhotes, em suas diferentes fases de crescimento e níveis de conhecimento em artimanhas.
Não se pode confiar em coelhos, ouvira isso a vida toda.
Mas confiava em Nico, um coelho e um ladrão.
Um amigo.
– Não temos um gancho. – Disse, depois de avaliar pela terceira vez todos os nós. – Vou ter de escalar o muro, no fim das contas. Lá em cima, dou um jeito de prender pra você subir.
Nico deu de ombros. Não havia outra forma.
Se conseguissem finalizar o roubo com sucesso, o pagamento seria o suficiente para viver confortavelmente por quatro longos meses. Além da fama e do prestígio dentro da guilda.
Havia um pequeno detalhe: ninguém antes roubara a academia de magos. De todos os que tentaram, poucos conseguiram deixar os calabouços do rei.
E havia ainda outro detalhe, e o cliente fora bem específico quanto ao item em questão...
A joia do reino, o tesouro máximo das lendas e canções, de um extremo poder mágico, seja lá o que isso queira dizer.
Para Izel, era o desafio dos desafios.
Sorriu.

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