segunda-feira, 31 de outubro de 2016

O Monstro do Papai

#1

  - Tem certeza? – Perguntou Nuke, franzindo o cenho. Ao fundo uma música baixa se fazia ouvir. – Pode ser uma armadilha.
 - Não é. – Liessa odiava a forma como o capitão tendia a ser desconfiado. – Estou trabalhando nisso há meses. O barão está contratando uma nova professora de dança para a filha. O cargo já é meu.
 - É muito arriscado, Liessa. – Clarke estava de mal humor desde cedo, e Liessa sabia muito bem qual o motivo. – Se você entrar naquela mansão, jamais sairá.
 - É para isso que estamos aqui, não é? – Desculpe, Clarke. – Posso me cuidar, está bem?
 - Liessa tem razão. – O capitão enfim concordava. Seus dois guarda-costas pareciam convencidos também. – Quando começa?


 - Amanhã. – Cruzou brevemente com o olhar de Clarke, que a fulminava. – Farei um reconhecimento da propriedade antes de agir. Três dias será o suficiente.
 - Daqui a três dias, então. – Nuke apontou para o mapa sobre a mesa. – Faremos o rapto neste bosque, próximo da ala norte da mansão. Esteja lá, Liessa.
 - Estarei, senhor.
 - Contamos com isso. – Fez um sinal para que um de seus homens recolhesse o mapa, enquanto outro se adiantou até a porta e a abriu, permitindo que a música do salão lá embaixo invadisse aquele quarto escuro e poeirento.
 E o capitão se retirou, deixando-os sozinhos. Clarke deixou-se cair pesadamente sobre uma cadeira.
 - O que foi? – Liessa perguntou ao fechar a porta, reduzindo novamente a música a um mero som ao fundo. Sabia a resposta, é claro.
 - Não me agrada você dentro da mansão. Mesmo que só por três dias.
 - Escute. – Andou até ele e tirou-lhe o chapéu, para em seguida afagar-lhe de leve os cabelos. – Confie em mim, como sempre faz. Posso dar conta disso. O barão sequer desconfia que temos um batalhão na cidade planejando o ataque.
 Clarke envolveu-a num abraço.
 - Confio nas suas habilidades. – Disse sem perder aquele tom pessimista. Liessa odiava aquele tom. – Mas Malkor não é um criminoso comum. É simplesmente o maior necromante que o mundo já viu. O império tenta derrubá-lo há três gerações.
 - Eu sei. – Bufou. Por que é tão difícil confiar em mim? – Só estou pedindo para ficar calmo. -Por que voc...
 A música parou de repente, dando lugar à cacofonia estrondosa de tiros e gritos.
 Clarke se levantou e calçou a porta, já em alerta. Liessa puxou os mosquetes de debaixo da cama.
 Carregou um e alcançou ao companheiro, para depois fazer o mesmo com o seu. Pólvora e chumbo, uma combinação que podia resolver a maioria dos seus problemas.
 Esperaram, de prontidão. Os gritos cessaram poucos segundos depois dos últimos disparos. Com não mais do que um sussurro, Liessa perguntou:
 - Ouve alguma coisa?
 Clarke balançou negativamente a cabeça. Se manteram em silêncio por mais alguns instantes.
 -Droga, Clarke... – Liessa esgueirou-se até a janela. Não via nada na rua, lá embaixo. Mesmo no escuro da noite, enxergaria a movimentação de uma pequena tropa. – Isso não está cheirando bem...
 Seu companheiro abriu a porta com toda a calma do mundo, tão silencioso quanto um rato numa cozinha. Com um sinal de mão pediu cobertura e saiu sorrateiramente. 
 Seguiu-o depois de alguns passos. O corredor do lado de fora do quarto era uma espécie de mezanino, de onde dava para ver o palco e o salão da taverna lá embaixo.
 Havia sangue. Tanto sangue quanto num campo de batalha. Como se alguém tivesse trazido baldes cheios e os derramasse a esmo pelo piso e as paredes.
 E claro, havia também os corpos.
 Dezenas, espalhados por todos os cantos, inclusive sobre o mezanino. Os clientes daquela taverna eram, no geral, trabalhadores do vilarejo. Caçadores, lenhadores, pistoleiros...
 Nenhum soldado, imperial ou do baronato...
 Viram as armas espalhadas conforme avançavam. Peças atiradas como se não tivessem nenhum valor. Eram arcabuzes, em sua maioria, muito inferiores aos mosquetes de Liessa e Clarke. Seja o que for que tenha acontecido aqui, essas armas foram inúteis.
 Pararam pouco antes de alcançarem as escadas. Finalmente podiam ver o que causara aquele pandemônio.
 Estava lá embaixo, no salão, alimentando-se de um dos corpos. A criatura lembrava uma aranha, com o corpanzil negro e peludo de oito patas, embora tivesse o tamanho de um cavalo.  Mas não era uma simples aranha gigante. Onde deveria ser a cabeça havia um torso humano. Ou que deveria ter sido humano um dia, Liessa não pôde deixar de pensar. O torso era cinzento e repleto do que pareciam ser cicatrizes, uma confusão de cortes e queimaduras. Não possuía mãos: seus braços terminavam em longas e afiadas garras em forma de foice.
 A cabeça, no entanto, talvez fosse o que havia de mais horrendo. Três pares de olhos e dois de quelíceras formavam o rosto bestial, uma visão saída do mais profundo inferno. O topo do crânio era alongado em chifres disformes e grotescos, como se os ossos estivessem tentando fugir daquele corpo amaldiçoado.
 Clarke respirou fundo. Liessa sabia que ele já tinha a criatura sob pontaria. Nenhum dos dois, caça ou caçador, faziam som algum. Como se fossem uma pintura, algo eternizado por algum artista perturbado.
 Liessa também fez pontaria, embora tivesse certeza da perícia de tiro de seu parceiro.
 E o homem esperou. Esperou e esperou.
 E atirou.
 E o inferno começou novamente.
 Feriu a criatura, claro. O mosquete que usavam era infinitamente superior às armas dos nativos. Liessa viu um sangue verde espirrar para todo lado, fazendo a criatura cambalear.
 Mas não caiu. A aranha eriçou os pelos de seu corpanzil e avançou, estalando as quelíceras e aprontando as foices para o ataque.
 -Para a cozinha, Liessa! – Clarke gritou, enquanto corria escada abaixo e na direção do bar.
 Pularam sobre o balcão, escapando por um triz dos braços em forma de foice. Cruzaram a porta da cozinha e Clarke fechou-a.
 - Isso não vai segurá-lo. Me dê o seu mosquete!
 Clarke atirava melhor. Sempre fora assim. Sem questionar, Liessa deu sua arma carregada e pegou a do companheiro. Afastaram-se da porta, ele fazendo pontaria enquanto ela colocava pólvora pelo cano da arma.
 Silêncio novamente. Esperavam que a porta da cozinha fosse arrombada e que o monstro entrasse rapidamente atacando, mas nada.
 Liessa colocou a esfera de chumbo e empurrou com a bucha. Demorava a carregar, por isso atuavam sempre aos pares.
 - Eu não estou gostando disso... – Começou Clarke, quando uma brisa soprou da rua às costas dos dois. Virou-se para Liessa. Atrás dela, a porta para a rua estava aberta. – Foi você que abriu a...
 E do alto o golpe veio. O monstro estava no teto, e usou uma de suas foices para golpear Clarke nas costas.
 Suspendeu-o no ar. Ainda estava vivo.
 - Fuja... – Tentou gritar, mas a voz saiu fraca. O mosquete caiu de suas mãos – Fuja...
 Liessa deu às costas e correu para a rua, para a noite fria. Ainda tinha sua arma, pronta para disparar.
 Mas só conseguiria dar um tiro. E sabia que precisaria de mais.
 Os anos como caçadora de elite do império falaram mais alto. Correu na direção do depósito, um galpão nos fundos da hospedaria. Havia um carroção na frente das portas.
 Um carroção que Liessa sabia estar carregado de barris de pólvora.
 Estava próximo do carroção quando a criatura saiu pela porta, correndo diretamente em seu encalço.
 Correu como se tudo dependesse disso. E tudo dependia. Não era só a sua vida, mas o trabalho que vinha fazendo nos últimos meses.
 O barão precisava ser derrotado e capturado. Para que monstruosidades como aquela deixassem de existir.
 Passou pelo carroção e virou-se, correndo de costas. A arma levantada, esperando...
 Esperando...
 Quando a criatura alcançou a carga, Liessa disparou.
 E acordou todo o vilarejo, com um show de fogos digno dos maiores festivais.

***

 Papai tinha muitos monstros, e por isso era perigoso ir lá fora. Era o que a velha governanta da mansão sempre dizia. E, conforme os anos passaram e a curiosidade da pequena Lucca aumentara ao ponto de uma criança de nove anos não poder aguentar, sentia que devia dar um jeito de sair.
 Não que já não tivesse tentado. Afinal, Lucca era a filha do barão, e deveria fazer o que quisesse. Pelo menos era nisso que acreditava.
 Mas, na prática, era tudo diferente. Lucca não conseguia se lembrar de algum dia já ter ido até o lado de fora, e isso a frustrava profundamente.
 Não que a vida fosse frustrante. Muito pelo contrário. Como filha do barão, cabia-lhe uma educação exemplar. Sabia ler e escrever em três idiomas. Conhecia história e geografia e matemágica. Conhecia artes e ciências, e até mesmo já havia lido alguns livros.
 Mas não era o bastante. Queria ir lá fora. Andar a cavalo na campina, colher flores no bosque, passear pela cidadela...
 Tinha boas esperanças para o dia que recém começava. Deveria ter aulas de dança, mas a professora já não aparecia há três semanas. Se tivesse algum tempo livre, daria um jeito de sair.
 Desceu até o salão principal da mansão bem cedo, como fazia todos os dias. Se a professora não estivesse lá esperando, a manhã seria de aventuras.
 E, para sua decepção, a governanta a esperava. E acompanhada.
 - Bom dia, senhorita Lucca. – A velha bruxa lhe dava arrepios. Tinha grossas olheiras e um rosto tão enrugado e cinzento que parecia uma velha capa viagem.  – Está vinte minutos atrasada.
 - Desculpe. – Estudou a outra mulher com toda a perspicácia que uma criança de nove anos poderia ter. Ela era muito bonita, com a pele morena e um longo cabelo trançado. Sentiu o ânimo se esvair um pouco. Afinal, a mulher estava com roupas apropriadas para...
 - Esta é Liessa. – Recomeçou a governanta, com sua voz cadavérica. – Sua nova professora de dança.
 - Bom dia, mestra Liessa. – Lucca sorriu para a nova professora. Queria sair lá fora mais do que tudo, e não seria hoje que se daria por vencida.

***

 Movia-se furtivamente pela mata, a maneira natural como os predadores espreitavam, apesar de toda a dificuldade que a falta de metade das pernas causava. Arrastava-se debilmente algumas vezes, e tinha de usar um dos braços para ajudar. Sentia um pouco de fome, visto que mal se alimentara na noite passada, apesar da caçada ter rendido dezenas de presas abatidas.
 No fim das contas, estavam onde o mestre disse que estariam.
 O mestre sempre sabia das coisas, e era por isso que o odiava.
 Não só por isso. Deixara uma das presas escapar, a fêmea. Ela se mostrara mais perigosa do que qualquer caça antes, e isso até mesmo o mestre teria de admitir.
 Afinal, estaria morto se não fosse praticamente indestrutível.
 Ainda sentia o cheiro da fêmea que lhe ferira. Estava mais fraco, mas ainda conseguia senti-lo. Perseguiria-a até o fim dos tempos, se fosse preciso.
 Mas outros odores tiraram-lhe a concentração. Precisava estar preparado para pegá-la.
 Desviou-se um pouco para o leste, até alcançar uma fazenda. Seu corpo estava terrivelmente avariado.
 Precisava comer.

***

 - Então, Lucca. – A nova professora sorria com um ar gentil. – Quantos anos você tem?
 - Nove. – Tentava parecer obstinada, como a herdeira do baronato que era. – Faço dez em sete meses.
 Andavam pelos vastos corredores e alas da mansão, dirigindo-se para o salão das artes.
 - Gosta de dançar?
 - Prefiro ler. – Era verdade. Lucca era dada aos livros mais do que o normal para qualquer garotinha da sua idade. Ou com o dobro da sua idade. De qualquer forma, Lucca não tinha contato com outras meninas. – Mas a velha governanta diz que uma dama deve ser versada em múltiplas habilidades.
 - Você ainda é criança, Lucca. – Disse Liessa quando finalmente adentraram no salão das artes. – Esqueça a velha por algum tempo, ok?
 A professora abriu a porta do salão com um sorriso, e recebeu uma bela e pura risada infantil de volta.
 - Não devia falar assim, mestra.
 - Por quê? – A mulher fechou a porta. – Não tenho medo da velha bruxa. E você não deveria ter. Você é a filha do barão, no fim das contas.
 - E se eu disser que não quero dançar? – Disparou, com toda a sua perspicácia de quase uma década.
 - Então não dançaremos. – A professora abriu os braços num gesto amplo. – Temos a manhã livre, então. O que quer fazer?
 Lucca não conseguia acreditar. A professora só podia estar enlouquecendo.
 - Quero ir lá fora. – Disse, com aquele ar sonhador que até então ninguém naquela mansão teve o prazer de presenciar. – Mas não me deixam.
 - Seu desejo é uma ordem, milady. – Liessa fez uma mesura. – Conheço um caminho secreto.
 Que sorte, pensou Lucca, extasiada.
 
#2
***

 Depois de horas de intensa dor e agonia, finalmente estava recuperado. Oito pernas, dois braços e sem quaisquer traços de queimaduras.
 Estava novo em folha, e pronto para perseguir sua presa.
 A fazenda foi então deixada par trás. Quando voltasse da lavoura no fim do dia, o fazendeiro descobriria estar oito vacas mais pobre.
 Embrenhou-se novamente no bosque. Desta vez movia-se com agilidade, com toda a desenvoltura que o mestre lhe dera.
 Como o odiava. Lembrava do mestre desde o princípio, quando acordara pela primeira vez depois daquele sonho estranho...
 Não conseguia se lembrar...
 O cheiro tornou a invadir-lhe as narinas, fazendo grossos pelos negros se arrepiarem por todo o torso aracnídeo e pelas costas humanas.
 Era ela, a fêmea que quase o matara. Mas não estava só. Havia...
 Outra coisa...
 Um cheiro estranho. Carne, sim. Mas diferente. Não sabia dizer o que era, apenas que era diferente.
 Mas sabia que deveria voltar. O mestre não admitiria que se empenhasse numa caçada pessoal, por vingança. Poderia levar dias ou meses. Ou anos...
 Sabia também que o mestre não tolerava fracassos. Deixara uma presa escapar, portanto a responsabilidade seria sua.
 Era um impasse. Odiava o mestre, sim, embora não soubesse exatamente o porquê...
 Com todos os sentidos aguçados pela curiosidade, tomou a direção na qual sentia o cheiro da presa.
 Partiu, salivando de excitação.

***

 Podia vê-las de onde estava, perfeitamente camuflado pela vegetação ao redor. Duas fêmeas: uma adulta, a que lhe escapara três dias atrás e lhe ferira como ninguém nunca antes. A outra era filhote. O cheiro do sangue quente penetrava-lhe pelas narinas, fazendo com que a bestialidade estivesse prestes a despertar. Mas algo parecia diferente...
 A pequenina corria pela grama, descalça e radiante, iluminada pelos raios do sol matutino. Corria alguns passos, depois se atirava em meio às flores, rindo como apenas os filhotes humanos eram capazes.
 A fêmea adulta apenas a observava. Percebeu-se admirando-a como uma igual. Afinal, ela era uma caçadora também. A primeira presa capaz de feri-lo de verdade. A primeira a conseguir escapar.
 Mesmo que agora estivesse ali, desprotegida. Podia sentir o sangue pulsando sob a pele dela. Sentia os pelos se eriçarem, apenas ao pensar na refeição que ela lhe proporcionaria.
 Mas algo ainda o inquietava. O cheiro da filhote. Era como algo... Doce. Algo que lhe escapava da cabeça, não importava o quanto tentasse raciocinar.
 O mais estranho era que não queria matá-la. Muito pelo contrário, queria protegê-la. Queria ficar ali por horas observando-a sorrir. Sentia-se...
 Feliz...

***

 Nuke estava demorando, mas Liessa sabia estar mais nervosa do que deveria. Tinha a filha do barão consigo, e estava no ponto de encontro. Sabia que o capitão viria. Passara os últimos dez anos depositando sua fé em Nuke, e o capitão nunca falhara com ela.
 Mas o monstro que combatera ao lado de Clarke três dias atrás deixara sua marca.  Escapara por muito pouco, e doía pensar no parceiro falecido. Nunca encontrara algo tão perigoso em toda sua vida como caçadora imperial.
 Tentava colocar os sentimentos de lado, mas era difícil. Clarke era mais do que um amigo... Fechou os olhos e respirou fundo. Precisava da mente limpa.
 Olhou para o gramado onde Lucca corria e pulava como qualquer criança deslumbrada. Tão inocente... Não merece o pai que tem...
 O barão Malkor era o governante daquelas terras há quase cem anos. Era um necromante poderoso, mestre em uma arte proibida pelo império desde a época do primeiro imperador.  No entanto, o baronato resistia às investidas imperiais.
 Um gênio da magia negra, Malkor era famoso pelo seu dom de manipular coisas vivas – o monstro que Liessa enfrentou na estalagem era um claro exemplo. Seu exército era composto por um sem fim de aberrações, uma mais terrível que a outra.
 Além de tudo mais, era extremamente cruel e impiedoso. A criatura atacara a estalagem e matou até mesmo os inocentes, apenas na suspeita de espiões imperiais.
 Liessa olhava Lucca, tão feliz brincando na orla do bosque. E tudo o que conseguia sentir era pena.
 Algo saiu de dentro da mata rapidamente, e dois segundos bastaram para que Liessa estivesse no chão, a criatura salivando sobre ela, a terrível boca aberta. Seis olhos a encaravam.
 Tentou pegar a faca que trazia escondida, mas um golpe rápido do monstro a desarmou. Cambaleou e caiu para trás.
 Viu os braços terminados em foice se erguerem para o golpe que a levaria para junto de Clarke. Fechou os olhos.
 - Não! – O grito de Lucca a despertou do devaneio, e os segundos passaram sem que lâmina alguma lhe ceifasse a vida.
 Do chão, viu a criatura avançar na direção de Lucca.
 Tateou na grama em busca da faca. Quando a encontrou, levantou-se rapidamente, pronta para correr.
 Mas parou, aturdida demais para entender.
 A criatura estava curvada diante da menina, de cabeça baixa. Lucca afagava-lhe a cabeça, como se o fizesse a um cão.
 - Bom menino. – Não nega ser a filha do barão... O que me leva a concluir que não passa de outro monstro.
 - Lucca... O que você...?
 - Não sei, Liessa... Sei que deveria estar com medo, mas não estou. – Sorriu. – Não se preocupe. Ele não vai nos ferir. Não sei como. Apenas sei.
 Liessa sentiu uma lágrima escorrer pelo rosto. Onde infernos estou me metendo?
 Um ruído e Lucca estava no chão. Um pequeno dardo colorido no pescoço. Sonífero. São eles.
 E Liessa apenas observou. Viu a criatura se levantar em posição de ataque, ao passo que sete caçadores imperiais irromperam da mata, de mosquetes nas mãos, abrindo fogo.
 Correu até Nuke, que recarregava. Nem todos tinham a mesma sorte. O monstro era extremamente resistente e atacou antes que a segunda saraivada fosse disparada. Três caçadores caíram perante as lâminas negras daqueles braços antinaturais.
 - Que Merda é essa? – Nuke alcançou o mosquete à Liessa. Tirou uma garrucha do coldre. – Por acaso foi ele naquela noite?
 - Sim. – Liessa fez pontaria, mas não disparou. – Esqueça a pistola, Nuke, será inútil. Tem alguma bomba?
 O capitão a encarou, perplexo.
 - Recuar! – Nuke gritou quando o quarto homem caiu. – Recuar! Liessa, pegue a garota.
 E os caçadores restantes correram para o meio das árvores, com a criatura em seu encalço.
 Liessa ficou para trás, para pegar Lucca, desmaiada em meio à vegetação rasteira.
 - Desculpe, pequenina. Nada pessoal. – Disse ao pegá-la no colo, quando um barulho ensurdecedor vindo do meio da mata indicava que Nuke tinha algum tipo de explosivo à disposição. Liessa apressou-se ao seu encontro.
 O capitão estava acompanhado por mais um homem.
 De sete, apenas dois restaram...
 Estavam em frente ao que sobrara do monstro. Havia perdido as oito patas de aranha, bem como um braço. Tinha todo o lado esquerdo em carne viva, chamuscado e esfumaçando.
 - Dóris tinha uma bomba consigo. – Nuke começou. Liessa nunca vira tanta raiva naqueles olhos. – Ela se explodiu com ele.
 A criatura tentava debilmente se arrastar na direção deles, tentando se impulsionar com o único braço.
 O capitão então sacou seu facão e, num acesso de fúria, decepou o braço restante da criatura, que caiu de lado se retorcendo em meio à silvos e gritos.
 - Sua abominação. – Nuke cuspiu no monstro. – Vamos embora. Ateie fogo neste infeliz.
 E o caçador restante acendeu uma tocha e jogou sobre o monstro, que sequer tinha pernas para fugir. E os três partiram, levando consigo Lucca como refém.
 Agora teremos uma chance, pensou Liessa, enquanto se afastavam. O monstro queimou e queimou.
 Ao menos Clarke foi vingado.

***

 Dor. Durante um dia inteiro e uma noite inteira. A agonia que o consumia e fazia-o querer estar morto. Havia sido assim desde sempre...
 Estava sobre a mesa de operações do mestre. Sua mesa, na verdade. Tiras de couro prendiam-no pelo corpo aracnídeo, e não importava o quanto movesse as pernas, a força parecia não ser o suficiente para libertá-lo.
 Demorou a perceber que tinha pernas novamente, bem como braços. Ergueu-os diante dos olhos: pareciam pesados num primeiro momento, brilhavam como espadas recém polidas.
 - Espero que goste dos aprimoramentos. – O mestre estava presente, e assustava-lhe o fato de não ter percebido antes. – Espero que membros reforçados com metal o tornem mais resistente ao fogo e às explosões.
 Fez força para se soltar novamente. Era sempre assim quando acordava na mesa de procedimentos. Sentia raiva do mestre por lhe causar tanta dor. Se conseguisse se soltar, poderia matá-lo.
 Mas nunca conseguia. O mestre sempre o persuadia de uma forma ou de outra.
 - Levaram a pequena Lucca. – Malkor, seu mestre, encarou-o no fundo dos olhos. Aqueles olhos azuis conseguiam fazê-lo se sentir aterrorizado. – Pensam que podem jogar com a vida daquela garotinha inocente.
 Debateu-se, de raiva e ódio. Mas não pelo mestre. Lembrava-se dos caçadores. Da explosão e do fogo. Queria vingança, mas também se lembrava da filhote.
 E queria protegê-la, o que era cada vez mais estranho.
 - Vou soltá-lo. – O mestre estalou os dedos e as correias que o seguravam se soltaram.  Ergueu-se como o maior de todos os predadores, testando seus novos membros de metal.  Saltou até o teto e encarou o mestre.
 Conseguiria matá-lo?
 Testou as foices dos braços, uma contra a outra, produzindo faíscas. Sentia-se forte.
 O mais terrível dentre os predadores.
 - Sei que conseguirá encontrá-la. – Malkor sentou-se. Estava vulnerável. – Traga Lucca de volta.
 Desceu. Rápido como uma águia que mergulha para alcançar sua presa.
 Ficou cara a cara com Malkor. Aqueles terríveis olhos azuis encararam seus três pares de olhos sem vacilar.
 - Quer me matar, não é? – O mestre sorriu, mostrando uma boca cheia de dentes insuportavelmente brancos. – Eu sei que quer.
 Virou a palma da mão direita para cima, conjurando um pequeno globo azul escuro.
 - Isto é um presente para você. – Empurrou o globo até a criatura, fazendo-o penetrar em sua cabeça. Era como uma nuvem de vapor, só que mais denso. – Para depois de libertar e trazer de volta a pequena Lucca. Se quiser me matar depois disso, estarei à disposição.
 Gritou. Tão alto o quanto podia. Deixou o mestre para trás, com todos os seus zumbis e criaturas horrendas.
 Tinha uma caçada para terminar, afinal.

***

 Liessa abriu os olhos e espreguiçou-se. O sono das últimas horas fizera um bem extremamente necessário. Estava completamente revigorada.
 - Traidora. – A voz de Lucca trouxe-a de volta à realidade. A garotinha estava sob seus cuidados, de forma que a amarrou a uma cadeira para que pudesse dormir. Havia outra caçadora no quarto, Célia, que se ocupava em desmontar e limpar as peças de suas armas.
 - A cadelinha fala, no fim das contas. – Liessa não gostava nem um pouco de Célia, da forma irreverente com que ela tratava todos a sua volta.
 - Lucca. – Liessa se aproximou da garotinha. – Sabe o que está acontecendo?
 - Meu pai é o barão Malkor. – Disse com arrogância. – É o senhor legítimo destas terras. Vocês são invasores do império.
 - Você é inteligente, Lucca, parabéns. – Liessa tinha de admitir que a educação da pequena era exemplar. – Você andou lendo bastante. Mas antes de seu pai o baronato pertencia ao império. Em outras palavras, ele é o rebelde. E é um tirano.
 - Não importa. – Lucca deu de ombros. – Papai vai mandar alguns monstros, como sempre faz. Vocês não tem chance.
 Liessa sentiu um arrepio. Então ela sabe sobre o pai. O que importa? Ela é jovem demais para entender as consequências de mexer com magia negra.
 - Cale a merda dessa boca, cadelinha. – Célia deu um tapa na menina, fazendo um filete de sangue escorrer daquela boca pequena. – Seu pai vai ser derrotado em breve. Se ele não se entregar, matamos você.
 - Célia! – Liessa a repreendeu.
 - O quê? – Deu de ombros. Olhou com desdém para a menina. – Não é você quem faz as ameaças. Você já está aqui há dois dias, e nada dos monstros do seu pai. Ele deve estar pensando em um tipo de acordo agora mesmo. Acha mesmo que ele vai...
 Um barulho ensurdecedor fez com que Célia se calasse.
 - Uma explosão... – Liessa começou, quando o som de tiros começou a preencher o ar.
 A porta se abriu com um baque, e Nuke entrou apressado. Tinha o mosquete em mãos:
 - Liessa, pegue a menina. – Estava assustado e apavorado. – Ele voltou.
 - Quem? – Liessa começou a desamarrar Lucca, enquanto Célia começou a montar sua arma. O capitão começou a carregar o mosquete, apressado e trêmulo. –Nuke, o que está acontecendo?
 - Eu o matei, Liessa, você mesmo viu. – Com a arma já carregada, encarou-a: - Deixamos ele queimando no bosque.
 - Não me diga que aquela coisa...
 - Ele me quer, eu sei. – Nuke disse num tom sombrio, em meio ao som de tiros que vinham lá de fora. – Nunca vi tanta raiva num único ser.
 Liessa terminou de desamarrar a garotinha. O capitão continuou:
 - Leve a menina daqui. Ela é nosso último trunfo. Célia, você vem com...
 E a porta foi derrubada. A criatura que entrou era a mesma do bosque, Liessa tinha certeza.
 Estava, é claro, diferente. Estava completamente revestido de metal...
 Não, a coisa era metal.
 Avançou rapidamente e golpeou Nuke antes que pudesse disparar com o mosquete.
 Liessa puxou Lucca para o outro lado do quarto, para a janela.
 Pulou para a rua. Mas como era difícil tendo de arrastar a menina.
 A criatura não tardou a persegui-la, pois Célia não lhe deu o mínimo de trabalho. Havia outros caçadores, que se colocavam no caminho da fera, mas nenhum era capaz de fazer qualquer mal ao monstro em sua nova carapaça.
 E Liessa correu com Lucca, enquanto seus companheiros tombavam às suas costas. Um a um, aquela maldita criatura os destruía como se fossem moscas.
 No fim, fora encurralada. Entrara no armazém que usavam como armorial, pensando em talvez causar uma explosão como fizera naquela noite na taverna. Mas não havia nenhum carroção de pólvora. Os poucos barris restantes sequer estavam agrupados.
 Sem ter alternativa, pegou um mosquete em meio a tantos outros. Descarregado, mas equipado com uma baioneta.
 Morreria lutando, no fim das contas.
 Encarou a criatura nos olhos quando ela entrou pela porta do galpão. O corpo de aranha sempre lhe dava arrepios, a forma como se movia, desafiando a natureza.
 Soltou Lucca, que correu para junto de seu monstro salvador.
 Liessa procurou por um ponto fraco. O torso humano não era revestido de metal. Se tinha alguma chance, só saberia se tentasse...
 Atiraram-se um contra o outro.
 Se é para morrer, ao menos o levarei comigo...

***

 Acertou a fêmea humana na altura do peito, enterrando fundo sua foice na carne. Mas também sentiu a picada do metal frio: a ponta da arma da oponente a trespassar-lhe o peito.
 Sentiu as forças deixarem-no de repente. Seria a morte que tanto esperara nos momentos de agonia? Segundo o mestre, não poderia morrer...
 A esfera azul que o mestre lhe dera então saiu de seu crânio, flutuando como uma nuvem, e agora sabia exatamente o que era.
 Era uma lembrança...

 Estava mortalmente ferido, e não lhe restava muito tempo. Humano frágil. Lembrava-se da dor que sentia naquele momento. Era muito mais limpa do que a que estava acostumado agora.
 Ergueu a mão direita e a admirou. A esquerda não poderia, pois havia sido arrancada. Tentou levantar, e percebeu que já não haviam pernas. Estavam há alguns metros de seu corpo, inertes no chão.
 - Você já deveria estar morto. – O barão aproximara-se dele. Vestia-se de forma elegante, como sempre. Havia uma escolta de soldados mortos, mas não conseguia se lembrar dos detalhes disso. Não era importante.
 - A fazenda... – Disse, de forma automática. Afinal, era uma lembrança. – Maril... Deena... Lucca.
 - A fazenda foi saqueada e queimada. Sua família está morta. – Malkor foi firme ao fazer a afirmação. – Os corpos delas já foram recolhidos.
 - Malditos imperiais... – Sentiu os olhos se encherem de lágrimas. Sentiu raiva. Queria gritar. – Éramos simples fazendeiros...
 - Fazendeiros que plantavam nas terras do barão Malkor. – Chegou mais perto, e foi a primeira vez que reparou naqueles olhos azuis. – Minhas terras. Os imperiais não respeitam meu povo. Tratam vocês como lixo.
 - Para o inferno com todos eles. – Olhou para o seu senhor, também com raiva dele. Como barão, deveria tê-los protegido. – Para o inferno com você também.
 - Você é corajoso. – Malkor sorriu. Ergueu a mão: - Tragam-na.
 E dois soldados mortos trouxeram o corpo da pequena Lucca, sobre uma padiola. Estava branca como gelo, suja de terra e sangue.
 Envolta numa espécie de aura esverdeada.
 - Lucca. – Era a sua mais jovem. Cinco anos apenas. – O que foi que você fez?
 - Impedi que ela partisse totalmente. – Colocou a mão sobre a testa da criança. – Ainda posso salvá-la.
 - Salve-a, então. – Sentiu novamente as lágrimas. – Minha pequena Lucca.
 - O que me dará em troca?
 - Qualquer coisa.
 - Conhece a natureza de meu trabalho, não é? – Abriu os braços num gesto amplo. Sabia do que tudo se tratava. O barão era dado às artes negras. Seu exército era composto por mortos vivos e outras abominações.
 - Sim. – Se fosse para Lucca viver, faria o que fosse. – Mas, precisa da minha permissão? Não bastaria me levar e me transformar numa dessas... coisas?
 - Não é assim que funciona. – Franziu o cenho. – Muitas vezes é, mas os resultados não são muito expressivos. Em outras palavras, tenho zumbis demais. Chegou a hora de dar um novo passo. – Respirou fundo antes de continuar: - Há um experimento que sempre quis testar, mas temo que a dor seja num nível inimaginável. Apenas alguém com uma motivação forte o bastante, sedento por vingança, suportaria. O que me diz?
 - Vou poder matar imperiais, depois?
 - Tantos quantos se colocarem em nosso caminho. Farei de você o maior dentre os predadores.
 - E quanto à Lucca?
 - Ela terá um lugar em minha mansão. Será adotada como minha filha, e terá uma educação digna de uma dama.
 - Consegue apagar as memórias dela? Temo que ela tenha sofrido demais hoje.
 - Consigo. Temos um acordo então?
 - Espere. Que garantia eu tenho?
 - Esperto. – Malkor então puxou um punhal de dentro das vestes. Fez um corte na palma da mão direita e a estendeu. – Um pacto com o meu sangue. Cuidarei de Lucca como se fosse minha filha, e que essa promessa jamais possa ser quebrada.
 - Ótimo. – Estendeu a própria mão e apertou a de Malkor, selando o pacto.
 Deu uma última olhada em Lucca.
 Eu te amo, filha...

 Estava frente à frente com a fêmea humana, um acertado pelo golpe do outro.
 - Por que você não morre? – A mulher chorou, tentando enterrar sua arma mais fundo.
 Mas era inútil. O mestre cuidara daquilo. Não morreria com um ferimento destes.
 Usou o outro braço foice para colocar um fim na vida da sua presa mais desafiadora, com um corte limpo e rápido.
 Ao menos alguns podiam simplesmente morrer.
 A pequena Lucca veio correndo ao seu encontro. Queria contar-lhe tudo, e dizer mais uma vez que a amava.
 Mas não podia falar. Então seria inútil.
 - Vamos para casa? – Perguntou a menina, subindo em suas costas.
 E partiram, de volta para o mestre.

***

 Papai tinha muitos monstros, e por isso era perigoso ir lá fora. Lucca fizera dessa sua verdade, conforme os anos iam passando e passando. Sempre que podia ia escondida até o bosque, para rever seu monstro aranha. Ás vezes ele aparecia, mas muitas vezes não.
 Fosse como fosse, gostava dele. Não saberia dizer exatamente o porquê, a não ser o fato de a fera ter lhe salvado a vida. Mas sentia que havia algo mais.
 Talvez um dia encontrasse a resposta.
 
#3

***

Então, o que acharam? Eu havia planejado uma história mais longa centrada em Malkor, o necromante. Talvez algum dia eu desenvolva a ideia, quem sabe...

#1; #2; #3 - Imagens do jogo Skyrim.

8 comentários:

  1. Muito interessante! Uma leitura suave, mas com pontos de leitura intensa, me fazendo desejar mais informações. Adoro criaturas monstruosas! Parabéns. Ótimo texto!

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  2. Curti muito.
    Agora será legal um contraponto do imperio,eles provavelmente tem magos poderosos tambem.

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    1. Obrigado pela leitura, Miguel!

      Não tinha pensado em explorar o lado dos imperiais, mas vc e deu uma ideia interessante!

      Que sabe o que posso criar a partir disto?

      Forte abraço!

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