Diário do Arquimago – 23
Encontrei este livro no baú, e a parte complicada é que não o havia notado antes. Outro fato interessante é que ele só tinha um capítulo escrito - O tal fragmento 23. Não importava em que página eu colocasse, se o abrisse aleatoriamente ou o que fosse, era a mesma passagem, trecho por trecho. Como se o próprio arquimago quisesse que eu traduzisse aquele trecho...
#1 |
(...)
Gilkar era um lugar agradável. Um dos mais agradáveis em que já
estive, na verdade. A cidade situava-se num vale verdejante, e era entrecortada
por um rio de água tão cristalina que era possível ver os peixes sob a água.
Já havia estado lá, duas vezes. A primeira delas foi quando ainda
era um aprendiz. Mestre Hariel havia me levado para conhecer a Biblioteca das
Eras. Lembrava-me ter ficado, há época, fascinado como nunca antes. Tantos
livros. Livros sobre história, filosofia, matemágica, linguística, piromancia,
necromancia e etc. Tantos livros que eu julgava impossível ler todos, mesmo que
levasse a vida toda.
Mesmo que levasse cinco ou dez ou vinte vidas inteiras.
Lembro-me de mestre Hariel dizer se tratar da maior biblioteca de
todo o multiverso. E isso era impressionante.
Ao menos o era, na época.
#3 |
Da sacada, do alto da torre de observação da Biblioteca, podia ver
toda a cidade. Vi o por do sol se tornar noite. Uma bela noite sem estrelas.
No entanto, já começava a ficar impaciente. Havia chegado ao fim
da tarde, de maneira discreta. Fui conduzido até o alto da torre, onde me
pediram para esperar.
O problema era que já estava esperando havia quatro horas.
No horizonte, densas nuvens de chuva precipitavam-se em direção à
cidade, sinal claro de minha impaciência.
- Então você veio, no fim das contas. – Hariel havia entrado no
aposento. Era o mesmo. Sequer um dia mais velho, mesmo depois de centenas de anos.
– Sabia que viria, mais cedo ou mais tarde.
- Olá, Hariel. – Lembro de ter dito, animado. Esperei uma
eternidade por este momento.
- Antigamente você me chamava de mestre.
- Antigamente. – Pesei aquela palavra. Era muito relativa. – Você
já não é mais meu mestre há o quê? Duzentos? Trezentos anos?
- Todos sempre vamos ter algo há aprender. – Disse-me ele, com
aquela sua arrogância e superioridade que os mais velhos demonstram. – Você
ainda não sabe o que está prestes a fazer. Espero que não perceba tarde demais.
- Está enganado, velho. – Sorri. – Conheço as consequências, e
muito bem. Sei o que pode me acontecer. Posso lidar com tudo isso.
- Surpreende-me ter vindo aqui, então. – Hariel puxou uma cadeira
e se sentou. – Poderia ter acabado com isso sem se dar ao trabalho. Você está
blefando.
- Pensei que gostaria de uma chance. – Fiz uma pausa. – Estou
disposto a poupar sua preciosa cidade.
A tempestade já estava quase sobre a cidade, os relâmpagos
trazendo luz à noite.
- Está perdendo o seu tempo, garoto
tolo. - Hariel sempre falava como o mestre que era. Arrogante. - Se pensou que
eu entregaria a Biblioteca para você, não passa de um tolo.
Sorri para ele. Por que os velhos
tendem a ser tão teimosos?
- Imaginei que fosse negar. - Andei até
a sacada e olhei para o céu. As densas nuvens cobriam agora toda a cidade.
Relâmpagos e mais relâmpagos.
Esperando pelo meu sinal.
Um mero aceno, e um raio caiu no centro
da cidade. Uma poderosa descarga elétrica que varreu tudo o que encontrou pelo
caminho.
Hariel se pôs ao meu lado, na sacada.
Deleitei-me ao ver sua face horrorizada diante da cratera deixada onde antes
era uma hospedaria, ferraria ou tecelagem. Não importava.
- Pare. - Mais uma ordem do que um
pedido. Ele não parecia entender. - Você não sabe o que está prestes a fazer.
A arrogância de meu antigo mestre me
deixava cego de raiva. Por que não tenta me impedir? Ele sabia que eu desejava
derrotá-lo com minhas próprias mãos, e por isso tanta relutância.
Cedi aos meus impulsos infantis e
desmedidos. Concentrei uma pequena parcela de poder destrutivo na mão esquerda,
mas tinha certeza de que era o suficiente para fazê-lo engolir suas repreendas.
Virei-me para ele, minha expressão de
raiva estampada na face. Fazendo o papel ridículo de criança contrariada, mas
juro que há época a ira era genuína.
Toquei seu rosto antes mesmo que
pudesse expressar qualquer reação. Não ia matá-lo, pelo menos não naquela hora.
Queria que visse o que sua teimosia faria àquela bela cidade.
Só queria que sentisse dor.
Medo.
E, no fundo, queria ver se Hariel
poderia ser capaz de me odiar.
Mas não consegui completar o feitiço.
Um raio lançado em minha direção me obrigou a me afastar.
Não havia sido Hariel.
Obriguei-me a sorrir. Do outro lado da
sala, três magos nos encaravam. Estavam prontos para a batalha.
Prontos para morrer por Hariel, e pela
bela cidade de Gilkar.
Tudo em nome da Biblioteca das
Eras.
Patético.
- Mestre Hariel. - Um deles se adiantou
até onde o velho estava, a poucos passos de mim. Havia sido ele quem me
atacara. Tinha a aparência de uma idoso, com aquele cabelo grisalho e a longa
barba, embora fosse mais jovem do que eu. - O senhor está bem?
- Estou. Obrigado por terem vindo. -
Hariel voltou-se novamente para mim. Parecia cansado, como eu nunca antes o
vira. - Como vê, não vou ficar parado enquanto condena Gilkar e a si mesmo.
Eles foram os três aprendizes que treinei depois que você partiu. Já
completaram seu treinamento, de forma que já haviam partido. Quando soube que
você viria, eu os chamei.
- Ha! - Não escondi a empolgação. Sabia
que Hariel havia tomado novos pupilos. Estava ansioso por conhecê-los.
- Vou tirar este sorriso imundo de seu
rosto. - O mago que me lançara o raio estava visivelmente transtornado, e eu
podia sentir a tempestade que se formava em seu interior, uma forma de magia
inconstante como a tormenta. - Iremos impedí-lo.
- Como, exatamente? - Não deixei que
minha expressão mudasse. Aqueles três eram insignificantes. Eu estava séculos
há frente.
- Somos três, e você é apenas um. -
Disse outro, que ainda estava do outro lado da sala. Era grande e corpulento,
parecendo mais um brutamontes do que um mago. A magia que sua presença exalava
era primordial, selvagem. - E somos arquimagos, como você.
- Não. - Que insulto! - Não há outros
como eu. Não sou um arquimago. Sou O Arquimago. Não poderiam me derrotar nem em
cem mil anos.
- Arrogante, como mestre Hariel disse
que seria. - O terceiro integrante do grupo era uma mulher. Vestia um longo
manto cinzento e um chapéu pontudo. O que me deixou intrigado é que eu não
conseguia sentir a essência da sua magia. - Desista, arquimago. Deixe Gilkar e
não o machucaremos.
- Ótimo. - Andei até o centro do salão,
de modo a ficar entre os quatro. - Venham, arquimagos de Hariel!
Não foi uma batalha muito divertida, no
fim das contas. O mago dos relâmpagos se mostrou agressivo e poderoso, mas num
nível muito inferior. Atacou com a força de mil tempestades, que facilmente
absorvi em uma de minhas mãos.
- Relâmpagos são mágica de
principiante. Embora deva admitir que essa concentração de energia bruta me
surpreende. - Exclamei, sentindo todo aquele poder. Fagulhas selvagens tentavam
escapar por entre meus dedos. - Mas não é o bastante.
Redirecionei o ataque na direção do
mago, pegando-o de surpresa. A explosão foi violenta e destruiu parte de parede
da sala, ampliando ainda mais a visão que tinha da cidade lá embaixo. Hariel
teve tempo de se afastar.
De seu primeiro arquimago, nem sinal.
Mal pude contemplar minha vitória, e
feras grotescas estavam sobre mim. Eram versões maiores e retorcidas de lobos e
ursos, repletos de dentes e garras e sedentos pela carnificina.
Eram ferozes sim, mas lentos e
desajeitados. Enquanto evitava seus ataques, vislumbrei meu segundo desafiante.
Alto e corpulento, concentrava-se em conjurar as feras e atiçá-las contra mim.
Invocava-as com velocidade incrível.
No primeiro momento haviam sido duas.
Depois quatro, seis, oito... Em poucos segundos, lutava para me manter vivo, em
meio aquele turbilhão de presas afiadas.
Teria sido emocionante se não tivesse
sido tão ineficiente. Com um mero aceno, transformei as conjurações em pó.
Aturdido, o conjurador primal me
encarava. Já estava ofegante, mas eu tinha certeza de que ainda poderia mandar
mais e mais. Chato.
- Qual o seu nome, rapaz? - Perguntei,
demonstrando curiosidade.
- Eithrall. - Sua voz era poderosa como
o uivo de um lobo, em uma noite de caçada. - Da Lua de Sangue. Senhor das
caçadas da Floresta Eterna.
- Sei. - A Floresta Eterna, é claro. Um
dos muitos mundos governados pela deusa da natureza. Os maiores caçadores do
multiverso iam para lá depois da morte. - Aposto que pode fazer melhor.
E ele podia. Hariel e sua terceira
aprendiz apenas nos observavam. Eithrall se concentrou por alguns segundos que
me pareceram uma eternidade antes de conjurar sua última fera.
#2 |
Era uma das maiores bestas que já havia
visto. Toda chifres e presas, sustentava-se sobre as patas traseiras, enquanto
as dianteiras mostravam garras que poderiam destroçar um homem ao simples
toque.
- Este é o Teracórneo, a fera dentre as
feras. - Disse O Caçador, orgulhoso. Estava visivelmente exausto. - Pode
sentir-se orgulhoso. Ele ataca apenas os mais poderosos.
A fera então investiu em minha direção,
pronta para me destruir.
Ergui a mão e fiz com que parasse. Ao
meu comando, o Teracórneo se sentou.
- Bom garoto. - Sorri para ele. Era um
animal, no fim das contas. Se você entende um, entende todos. Toquei meu
indicador sobre seus olhos.
E a fera se tornou negra como a noite.
Ao meu comando, voltou-se para Eithral e atacou.
E a sala onde Hariel me recebera
acabava de perder mais uma parede. Caça e caçador, embora eu já não soubesse
mais quem era o que, despencaram lutando até a morte.
- Hariel, é sua última chance. - A
tempestade que eu preparara já estava sobre nós, sobre a biblioteca, o centro
da cidade. Esperava pelo meu comando. - Entregue a biblioteca e pouparei
Gilkar. Se é tão importante assim para você, eu a devolverei em um ou dois
milênios.
Mas Hariel estava estupefato, sem
qualquer reação. A maga ao seu lado se pronunciou em seu lugar:
- Desculpe, mestre. - Adiantou-se
alguns passos. - Vou ter que fazer, mesmo tendo prometido ao senhor.
- Não faça! - Hariel parecia ter
despertado. - Litz, não faça isso.
- Desculpe, não há outra forma.
E Litz, a arquimaga, ergueu ambas as
mãos e libertou a essência de sua magia.
Era algo... Diferente. Uma energia que
não parecia emanar por si só. Era como um buraco negro, alimentando-se de tudo
ao seu redor.
Tragando.
Toda a magia palpável começou a ser
sugada. Senti minha própria energia se esvaindo. Era inacreditável. Havia
ouvido falar de estrelas de nêutrons, mas nunca julgara possível a existência
de tais indivíduos.
E no entanto ela estava ali, há minha
frente. Um tipo novo de magia, e Hariel a mantendo escondida por todo este
tempo...
Ela poderia ser grande. Sim! Em
quinhentos anos, talvez, nem mesmo eu poderia derrotá-la. Hariel sabia disso, é
claro. Devia tê-la procurado. Devia tê-la treinado-a bem, como nenhum antes.
- Acabou, arquimago! - Disse-me ela,
triunfante. Percebi estar à beira do buraco negro, há um milésimo de segundo do
Nada.
Mas eu era O Arquimago. Havia desafiado
os deuses, todos eles, por tentar tomar para mim a Biblioteca das Eras. Eu
sabia das consequências, e estava pronto para pagar qualquer preço.
Nada poderia me parar naquele momento.
Nada.
Ela caiu de joelhos, suas mãos
envolvidas sob as minhas. Como acabávamos de perceber, estávamos pelo menos mil
anos mais velhos, por conta da variação temporal do horizonte de eventos.
- Litz. - Falei, olhando-a no fundo dos
olhos. - Nunca vi tanto poder antes concentrado numa única pessoa. Você é
especial. Sabe disso. Deixe-me explorar seu potencial. Com minha ajuda, você
poderá ser grande. Maior até mesmo que os deuses.
Era verdade. Queria tomá-la para mim e
protegê-la. Ensiná-la.
Parecia-me um desperdício matá-la.
Tanto potencial...
- Nunca. - A resposta foi cruel. Eu
tinha boas intenções.
Transformei-a numa estátua de pedra, na
posição em que estava. Ajoelhada, com as mãos unidas, olhando para mim.
Soltei-a. Hariel estava parado,
observando. Finalmente vi a arrogância deixar seu rosto velho. Parecia cansado.
- A Biblioteca é minha. - Falei. - Você
não me deu escolha.
E minha tempestade caiu. Um exército de
dragões, demônios, homens vermelhos, elfos negros e toda e qualquer coisa saída
dos pesadelos dos homens. Naquele dia, o Gilkar conheceu a destruição.
- O que foi que você fez? - Hariel caiu
de joelhos, enquanto o povo de Gilkar gritava e morria em agonia, lá embaixo. -
Os Deuses...
- Os deuses que venham! - Gritei, mais
para o mundo ao meu redor do que para meu antigo mestre. - Saberão onde me
encontrar.
Deixei Hariel ali, balbuciando
incoerências. O fracasso o havia quebrado de tal forma que seria perda de tempo
matá-lo. Ele não me incomodaria. Não mais.
Havia milhões de livros para ler.
Milhões de mundos para descobrir. Histórias para serem descobertas.
A Biblioteca das Eras era minha.
***
E abre-se um novo mundo.
ResponderExcluirMuito bom
Obrigado pela leitura, e vamo que vamo...
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