terça-feira, 7 de junho de 2016

Diário do Arquimago - Fragmento 23

Diário do Arquimago – 23

Encontrei este livro no baú, e a parte complicada é que não o havia notado antes. Outro fato interessante é que ele só tinha um capítulo escrito - O tal fragmento 23. Não importava em que página eu colocasse, se o abrisse aleatoriamente ou o que fosse, era a mesma passagem, trecho por trecho. Como se o próprio arquimago quisesse que eu traduzisse aquele trecho...

#1



(...)

Gilkar era um lugar agradável. Um dos mais agradáveis em que já estive, na verdade. A cidade situava-se num vale verdejante, e era entrecortada por um rio de água tão cristalina que era possível ver os peixes sob a água.
Já havia estado lá, duas vezes. A primeira delas foi quando ainda era um aprendiz. Mestre Hariel havia me levado para conhecer a Biblioteca das Eras. Lembrava-me ter ficado, há época, fascinado como nunca antes. Tantos livros. Livros sobre história, filosofia, matemágica, linguística, piromancia, necromancia e etc. Tantos livros que eu julgava impossível ler todos, mesmo que levasse a vida toda.
Mesmo que levasse cinco ou dez ou vinte vidas inteiras.
Lembro-me de mestre Hariel dizer se tratar da maior biblioteca de todo o multiverso. E isso era impressionante.
Ao menos o era, na época.
#3
 Da sacada, do alto da torre de observação da Biblioteca, podia ver toda a cidade. Vi o por do sol se tornar noite. Uma bela noite sem estrelas.
No entanto, já começava a ficar impaciente. Havia chegado ao fim da tarde, de maneira discreta. Fui conduzido até o alto da torre, onde me pediram para esperar.
O problema era que já estava esperando havia quatro horas.
No horizonte, densas nuvens de chuva precipitavam-se em direção à cidade, sinal claro de minha impaciência.
- Então você veio, no fim das contas. – Hariel havia entrado no aposento. Era o mesmo. Sequer um dia mais velho, mesmo depois de centenas de anos. – Sabia que viria, mais cedo ou mais tarde.
- Olá, Hariel. – Lembro de ter dito, animado. Esperei uma eternidade por este momento.
- Antigamente você me chamava de mestre.
- Antigamente. – Pesei aquela palavra. Era muito relativa. – Você já não é mais meu mestre há o quê? Duzentos? Trezentos anos?
- Todos sempre vamos ter algo há aprender. – Disse-me ele, com aquela sua arrogância e superioridade que os mais velhos demonstram. – Você ainda não sabe o que está prestes a fazer. Espero que não perceba tarde demais.
- Está enganado, velho. – Sorri. – Conheço as consequências, e muito bem. Sei o que pode me acontecer. Posso lidar com tudo isso.
- Surpreende-me ter vindo aqui, então. – Hariel puxou uma cadeira e se sentou. – Poderia ter acabado com isso sem se dar ao trabalho. Você está blefando.
- Pensei que gostaria de uma chance. – Fiz uma pausa. – Estou disposto a poupar sua preciosa cidade.
A tempestade já estava quase sobre a cidade, os relâmpagos trazendo luz à noite.
- Está perdendo o seu tempo, garoto tolo. - Hariel sempre falava como o mestre que era. Arrogante. - Se pensou que eu entregaria a Biblioteca para você, não passa de um tolo.
Sorri para ele. Por que os velhos tendem a ser tão teimosos?
- Imaginei que fosse negar. - Andei até a sacada e olhei para o céu. As densas nuvens cobriam agora toda a cidade. Relâmpagos e mais relâmpagos.
Esperando pelo meu sinal.
Um mero aceno, e um raio caiu no centro da cidade. Uma poderosa descarga elétrica que varreu tudo o que encontrou pelo caminho.
Hariel se pôs ao meu lado, na sacada. Deleitei-me ao ver sua face horrorizada diante da cratera deixada onde antes era uma hospedaria, ferraria ou tecelagem. Não importava.
- Pare. - Mais uma ordem do que um pedido. Ele não parecia entender. - Você não sabe o que está prestes a fazer.
A arrogância de meu antigo mestre me deixava cego de raiva. Por que não tenta me impedir? Ele sabia que eu desejava derrotá-lo com minhas próprias mãos, e por isso tanta relutância.
Cedi aos meus impulsos infantis e desmedidos. Concentrei uma pequena parcela de poder destrutivo na mão esquerda, mas tinha certeza de que era o suficiente para fazê-lo engolir suas repreendas.
Virei-me para ele, minha expressão de raiva estampada na face. Fazendo o papel ridículo de criança contrariada, mas juro que há época a ira era genuína.
Toquei seu rosto antes mesmo que pudesse expressar qualquer reação. Não ia matá-lo, pelo menos não naquela hora. Queria que visse o que sua teimosia faria àquela bela cidade.
Só queria que sentisse dor.
Medo.
E, no fundo, queria ver se Hariel poderia ser capaz de me odiar.
Mas não consegui completar o feitiço. Um raio lançado em minha direção me obrigou a me afastar.
Não havia sido Hariel.
Obriguei-me a sorrir. Do outro lado da sala, três magos nos encaravam. Estavam prontos para a batalha.
Prontos para morrer por Hariel, e pela bela cidade de Gilkar.
Tudo em nome da Biblioteca das Eras. 
Patético.
- Mestre Hariel. - Um deles se adiantou até onde o velho estava, a poucos passos de mim. Havia sido ele quem me atacara. Tinha a aparência de uma idoso, com aquele cabelo grisalho e a longa barba, embora fosse mais jovem do que eu. - O senhor está bem?
- Estou. Obrigado por terem vindo. - Hariel voltou-se novamente para mim. Parecia cansado, como eu nunca antes o vira. - Como vê, não vou ficar parado enquanto condena Gilkar e a si mesmo. Eles foram os três aprendizes que treinei depois que você partiu. Já completaram seu treinamento, de forma que já haviam partido. Quando soube que você viria, eu os chamei. 
- Ha! - Não escondi a empolgação. Sabia que Hariel havia tomado novos pupilos. Estava ansioso por conhecê-los.
- Vou tirar este sorriso imundo de seu rosto. - O mago que me lançara o raio estava visivelmente transtornado, e eu podia sentir a tempestade que se formava em seu interior, uma forma de magia inconstante como a tormenta. - Iremos impedí-lo.
- Como, exatamente? - Não deixei que minha expressão mudasse. Aqueles três eram insignificantes. Eu estava séculos há frente.
- Somos três, e você é apenas um. - Disse outro, que ainda estava do outro lado da sala. Era grande e corpulento, parecendo mais um brutamontes do que um mago. A magia que sua presença exalava era primordial, selvagem. - E somos arquimagos, como você.
- Não. - Que insulto! - Não há outros como eu. Não sou um arquimago. Sou O Arquimago. Não poderiam me derrotar nem em cem mil anos.
- Arrogante, como mestre Hariel disse que seria. - O terceiro integrante do grupo era uma mulher. Vestia um longo manto cinzento e um chapéu pontudo. O que me deixou intrigado é que eu não conseguia sentir a essência da sua magia. - Desista, arquimago. Deixe Gilkar e não o machucaremos.
- Ótimo. - Andei até o centro do salão, de modo a ficar entre os quatro. - Venham, arquimagos de Hariel!
Não foi uma batalha muito divertida, no fim das contas. O mago dos relâmpagos se mostrou agressivo e poderoso, mas num nível muito inferior. Atacou com a força de mil tempestades, que facilmente absorvi em uma de minhas mãos.
- Relâmpagos são mágica de principiante. Embora deva admitir que essa concentração de energia bruta me surpreende. - Exclamei, sentindo todo aquele poder. Fagulhas selvagens tentavam escapar por entre meus dedos. - Mas não é o bastante.
Redirecionei o ataque na direção do mago, pegando-o de surpresa. A explosão foi violenta e destruiu parte de parede da sala, ampliando ainda mais a visão que tinha da cidade lá embaixo. Hariel teve tempo de se afastar.
De seu primeiro arquimago, nem sinal.
Mal pude contemplar minha vitória, e feras grotescas estavam sobre mim. Eram versões maiores e retorcidas de lobos e ursos, repletos de dentes e garras e sedentos pela carnificina.
Eram ferozes sim, mas lentos e desajeitados. Enquanto evitava seus ataques, vislumbrei meu segundo desafiante. Alto e corpulento, concentrava-se em conjurar as feras e atiçá-las contra mim. Invocava-as com velocidade incrível.
No primeiro momento haviam sido duas. Depois quatro, seis, oito... Em poucos segundos, lutava para me manter vivo, em meio aquele turbilhão de presas afiadas.
Teria sido emocionante se não tivesse sido tão ineficiente. Com um mero aceno, transformei as conjurações em pó.
Aturdido, o conjurador primal me encarava. Já estava ofegante, mas eu tinha certeza de que ainda poderia mandar mais e mais. Chato.
- Qual o seu nome, rapaz? - Perguntei, demonstrando curiosidade.
- Eithrall. - Sua voz era poderosa como o uivo de um lobo, em uma noite de caçada. - Da Lua de Sangue. Senhor das caçadas da Floresta Eterna.
- Sei. - A Floresta Eterna, é claro. Um dos muitos mundos governados pela deusa da natureza. Os maiores caçadores do multiverso iam para lá depois da morte. - Aposto que pode fazer melhor.
E ele podia. Hariel e sua terceira aprendiz apenas nos observavam. Eithrall se concentrou por alguns segundos que me pareceram uma eternidade antes de conjurar sua última fera.
#2
Era uma das maiores bestas que já havia visto. Toda chifres e presas, sustentava-se sobre as patas traseiras, enquanto as dianteiras mostravam garras que poderiam destroçar um homem ao simples toque.
- Este é o Teracórneo, a fera dentre as feras. - Disse O Caçador, orgulhoso. Estava visivelmente exausto. - Pode sentir-se orgulhoso. Ele ataca apenas os mais poderosos.
A fera então investiu em minha direção, pronta para me destruir.
Ergui a mão e fiz com que parasse. Ao meu comando, o Teracórneo se sentou.
- Bom garoto. - Sorri para ele. Era um animal, no fim das contas. Se você entende um, entende todos. Toquei meu indicador sobre seus olhos.
E a fera se tornou negra como a noite. Ao meu comando, voltou-se para Eithral e atacou.
E a sala onde Hariel me recebera acabava de perder mais uma parede. Caça e caçador, embora eu já não soubesse mais quem era o que, despencaram lutando até a morte.
- Hariel, é sua última chance. - A tempestade que eu preparara já estava sobre nós, sobre a biblioteca, o centro da cidade. Esperava pelo meu comando. - Entregue a biblioteca e pouparei Gilkar. Se é tão importante assim para você, eu a devolverei em um ou dois milênios.
Mas Hariel estava estupefato, sem qualquer reação. A maga ao seu lado se pronunciou em seu lugar:
- Desculpe, mestre. - Adiantou-se alguns passos. - Vou ter que fazer, mesmo tendo prometido ao senhor.
- Não faça! - Hariel parecia ter despertado. - Litz, não faça isso.
- Desculpe, não há outra forma.
E Litz, a arquimaga, ergueu ambas as mãos e libertou a essência de sua magia.
Era algo... Diferente. Uma energia que não parecia emanar por si só. Era como um buraco negro, alimentando-se de tudo ao seu redor. 
Tragando.
Toda a magia palpável começou a ser sugada. Senti minha própria energia se esvaindo. Era inacreditável. Havia ouvido falar de estrelas de nêutrons, mas nunca julgara possível a existência de tais indivíduos.
E no entanto ela estava ali, há minha frente. Um tipo novo de magia, e Hariel a mantendo escondida por todo este tempo...
Ela poderia ser grande. Sim! Em quinhentos anos, talvez, nem mesmo eu poderia derrotá-la. Hariel sabia disso, é claro. Devia tê-la procurado. Devia tê-la treinado-a bem, como nenhum antes.
- Acabou, arquimago! - Disse-me ela, triunfante. Percebi estar à beira do buraco negro, há um milésimo de segundo do Nada.
Mas eu era O Arquimago. Havia desafiado os deuses, todos eles, por tentar tomar para mim a Biblioteca das Eras. Eu sabia das consequências, e estava pronto para pagar qualquer preço.
Nada poderia me parar naquele momento.
Nada.
Ela caiu de joelhos, suas mãos envolvidas sob as minhas. Como acabávamos de perceber, estávamos pelo menos mil anos mais velhos, por conta da variação temporal do horizonte de eventos.
- Litz. - Falei, olhando-a no fundo dos olhos. - Nunca vi tanto poder antes concentrado numa única pessoa. Você é especial. Sabe disso. Deixe-me explorar seu potencial. Com minha ajuda, você poderá ser grande. Maior até mesmo que os deuses.
Era verdade. Queria tomá-la para mim e protegê-la. Ensiná-la.
Parecia-me um desperdício matá-la. Tanto potencial...
- Nunca. - A resposta foi cruel. Eu tinha boas intenções.
Transformei-a numa estátua de pedra, na posição em que estava. Ajoelhada, com as mãos unidas, olhando para mim.
Soltei-a. Hariel estava parado, observando. Finalmente vi a arrogância deixar seu rosto velho. Parecia cansado.
- A Biblioteca é minha. - Falei. - Você não me deu escolha.
E minha tempestade caiu. Um exército de dragões, demônios, homens vermelhos, elfos negros e toda e qualquer coisa saída dos pesadelos dos homens. Naquele dia, o Gilkar conheceu a destruição.
- O que foi que você fez? - Hariel caiu de joelhos, enquanto o povo de Gilkar gritava e morria em agonia, lá embaixo. - Os Deuses...
- Os deuses que venham! - Gritei, mais para o mundo ao meu redor do que para meu antigo mestre. - Saberão onde me encontrar.
Deixei Hariel ali, balbuciando incoerências. O fracasso o havia quebrado de tal forma que seria perda de tempo matá-lo. Ele não me incomodaria. Não mais.
Havia milhões de livros para ler. Milhões de mundos para descobrir. Histórias para serem descobertas.
A Biblioteca das Eras era minha.

***

#Todas as imagens pertencem ao card game Magic: The Gathering, da Wizards of the Coast.

2 comentários: