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#1 |
- Tem
certeza? – Perguntou Nuke, franzindo o cenho. Ao fundo uma música baixa se
fazia ouvir. – Pode ser uma armadilha.
- Não
é. – Liessa odiava a forma como o capitão tendia a ser desconfiado. – Estou
trabalhando nisso há meses. O barão está contratando uma nova professora de
dança para a filha. O cargo já é meu.
- É
muito arriscado, Liessa. – Clarke estava de mal humor desde cedo, e Liessa
sabia muito bem qual o motivo. – Se você entrar naquela mansão, jamais sairá.
- É
para isso que estamos aqui, não é? – Desculpe,
Clarke. – Posso me cuidar, está bem?
- Liessa
tem razão. – O capitão enfim concordava. Seus dois guarda-costas pareciam
convencidos também. – Quando começa?
- Amanhã.
– Cruzou brevemente com o olhar de Clarke, que a fulminava. – Farei um
reconhecimento da propriedade antes de agir. Três dias será o suficiente.
- Daqui
a três dias, então. – Nuke apontou para o mapa sobre a mesa. – Faremos o rapto
neste bosque, próximo da ala norte da mansão. Esteja lá, Liessa.
- Estarei,
senhor.
- Contamos
com isso. – Fez um sinal para que um de seus homens recolhesse o mapa, enquanto
outro se adiantou até a porta e a abriu, permitindo que a música do salão lá
embaixo invadisse aquele quarto escuro e poeirento.
E o
capitão se retirou, deixando-os sozinhos. Clarke deixou-se cair pesadamente
sobre uma cadeira.
- O
que foi? – Liessa perguntou ao fechar a porta, reduzindo novamente a música a
um mero som ao fundo. Sabia a resposta, é claro.
- Não
me agrada você dentro da mansão. Mesmo que só por três dias.
- Escute.
– Andou até ele e tirou-lhe o chapéu, para em seguida afagar-lhe de leve os
cabelos. – Confie em mim, como sempre faz. Posso dar conta disso. O barão
sequer desconfia que temos um batalhão na cidade planejando o ataque.
Clarke
envolveu-a num abraço.
- Confio
nas suas habilidades. – Disse sem perder aquele tom pessimista. Liessa odiava
aquele tom. – Mas Malkor não é um criminoso comum. É simplesmente o maior
necromante que o mundo já viu. O império tenta derrubá-lo há três gerações.
- Eu
sei. – Bufou. Por que é tão difícil
confiar em mim? – Só estou pedindo para ficar calmo. -Por que voc...
A
música parou de repente, dando lugar à cacofonia estrondosa de tiros e gritos.
Clarke
se levantou e calçou a porta, já em alerta. Liessa puxou os mosquetes de
debaixo da cama.
Carregou
um e alcançou ao companheiro, para depois fazer o mesmo com o seu. Pólvora e chumbo,
uma combinação que podia resolver a maioria dos seus problemas.
Esperaram,
de prontidão. Os gritos cessaram poucos segundos depois dos últimos disparos.
Com não mais do que um sussurro, Liessa perguntou:
- Ouve
alguma coisa?
Clarke
balançou negativamente a cabeça. Se manteram em silêncio por mais alguns instantes.
-Droga,
Clarke... – Liessa esgueirou-se até a janela. Não via nada na rua, lá embaixo.
Mesmo no escuro da noite, enxergaria a movimentação de uma pequena tropa. –
Isso não está cheirando bem...
Seu
companheiro abriu a porta com toda a calma do mundo, tão silencioso quanto um
rato numa cozinha. Com um sinal de mão pediu cobertura e saiu sorrateiramente.
Seguiu-o
depois de alguns passos. O corredor do lado de fora do quarto era uma espécie
de mezanino, de onde dava para ver o palco e o salão da taverna lá embaixo.
Havia
sangue. Tanto sangue quanto num campo de batalha. Como se alguém tivesse
trazido baldes cheios e os derramasse a esmo pelo piso e as paredes.
E
claro, havia também os corpos.
Dezenas,
espalhados por todos os cantos, inclusive sobre o mezanino. Os clientes daquela
taverna eram, no geral, trabalhadores do vilarejo. Caçadores, lenhadores,
pistoleiros...
Nenhum
soldado, imperial ou do baronato...
Viram
as armas espalhadas conforme avançavam. Peças atiradas como se não tivessem
nenhum valor. Eram arcabuzes, em sua maioria, muito inferiores aos mosquetes de
Liessa e Clarke. Seja o que for que tenha
acontecido aqui, essas armas foram inúteis.
Pararam
pouco antes de alcançarem as escadas. Finalmente podiam ver o que causara
aquele pandemônio.
Estava
lá embaixo, no salão, alimentando-se de um dos corpos. A criatura lembrava uma
aranha, com o corpanzil negro e peludo de oito patas, embora tivesse o tamanho
de um cavalo. Mas não era uma simples aranha gigante. Onde deveria ser a
cabeça havia um torso humano. Ou que
deveria ter sido humano um dia, Liessa não pôde deixar de pensar. O torso
era cinzento e repleto do que pareciam ser cicatrizes, uma confusão de cortes e
queimaduras. Não possuía mãos: seus braços terminavam em longas e afiadas
garras em forma de foice.
A
cabeça, no entanto, talvez fosse o que havia de mais horrendo. Três pares de
olhos e dois de quelíceras formavam o rosto bestial, uma visão saída do mais
profundo inferno. O topo do crânio era alongado em chifres disformes e
grotescos, como se os ossos estivessem tentando fugir daquele corpo
amaldiçoado.
Clarke
respirou fundo. Liessa sabia que ele já tinha a criatura sob pontaria. Nenhum
dos dois, caça ou caçador, faziam som algum. Como se fossem uma pintura, algo
eternizado por algum artista perturbado.
Liessa
também fez pontaria, embora tivesse certeza da perícia de tiro de seu parceiro.
E o
homem esperou. Esperou e esperou.
E
atirou.
E o
inferno começou novamente.
Feriu
a criatura, claro. O mosquete que usavam era infinitamente superior às armas
dos nativos. Liessa viu um sangue verde espirrar para todo lado, fazendo a
criatura cambalear.
Mas
não caiu. A aranha eriçou os pelos de
seu corpanzil e avançou, estalando as quelíceras e aprontando as foices para o
ataque.
-Para
a cozinha, Liessa! – Clarke gritou, enquanto corria escada abaixo e na direção
do bar.
Pularam
sobre o balcão, escapando por um triz dos braços em forma de foice. Cruzaram a
porta da cozinha e Clarke fechou-a.
- Isso
não vai segurá-lo. Me dê o seu mosquete!
Clarke
atirava melhor. Sempre fora assim. Sem questionar, Liessa deu sua arma
carregada e pegou a do companheiro. Afastaram-se da porta, ele fazendo pontaria
enquanto ela colocava pólvora pelo cano da arma.
Silêncio
novamente. Esperavam que a porta da cozinha fosse arrombada e que o monstro
entrasse rapidamente atacando, mas nada.
Liessa
colocou a esfera de chumbo e empurrou com a bucha. Demorava a carregar, por
isso atuavam sempre aos pares.
- Eu
não estou gostando disso... – Começou Clarke, quando uma brisa soprou da rua às
costas dos dois. Virou-se para Liessa. Atrás dela, a porta para a rua estava
aberta. – Foi você que abriu a...
E do
alto o golpe veio. O monstro estava no teto, e usou uma de suas foices para
golpear Clarke nas costas.
Suspendeu-o
no ar. Ainda estava vivo.
- Fuja...
– Tentou gritar, mas a voz saiu fraca. O mosquete caiu de suas mãos – Fuja...
Liessa
deu às costas e correu para a rua, para a noite fria. Ainda tinha sua arma,
pronta para disparar.
Mas
só conseguiria dar um tiro. E sabia que precisaria de mais.
Os
anos como caçadora de elite do império falaram mais alto. Correu na direção do
depósito, um galpão nos fundos da hospedaria. Havia um carroção na frente das
portas.
Um
carroção que Liessa sabia estar carregado de barris de pólvora.
Estava
próximo do carroção quando a criatura saiu pela porta, correndo diretamente em
seu encalço.
Correu
como se tudo dependesse disso. E tudo dependia. Não era só a sua vida, mas o
trabalho que vinha fazendo nos últimos meses.
O
barão precisava ser derrotado e capturado. Para que monstruosidades como aquela
deixassem de existir.
Passou
pelo carroção e virou-se, correndo de costas. A arma levantada, esperando...
Esperando...
Quando
a criatura alcançou a carga, Liessa disparou.
E
acordou todo o vilarejo, com um show de fogos digno dos maiores festivais.
***
Papai tinha muitos monstros, e por isso
era perigoso ir lá fora. Era o que a velha governanta da mansão
sempre dizia. E, conforme os anos passaram e a curiosidade da pequena Lucca
aumentara ao ponto de uma criança de nove anos não poder aguentar, sentia que
devia dar um jeito de sair.
Não
que já não tivesse tentado. Afinal, Lucca era a filha do barão, e deveria fazer
o que quisesse. Pelo menos era nisso que acreditava.
Mas,
na prática, era tudo diferente. Lucca não conseguia se lembrar de algum dia já
ter ido até o lado de fora, e isso a frustrava profundamente.
Não
que a vida fosse frustrante. Muito pelo contrário. Como filha do barão,
cabia-lhe uma educação exemplar. Sabia ler e escrever em três idiomas. Conhecia
história e geografia e matemágica. Conhecia artes e ciências, e até mesmo já
havia lido alguns livros.
Mas
não era o bastante. Queria ir lá fora. Andar a cavalo na campina, colher flores
no bosque, passear pela cidadela...
Tinha
boas esperanças para o dia que recém começava. Deveria ter aulas de dança, mas
a professora já não aparecia há três semanas. Se tivesse algum tempo livre,
daria um jeito de sair.
Desceu
até o salão principal da mansão bem cedo, como fazia todos os dias. Se a
professora não estivesse lá esperando, a manhã seria de aventuras.
E,
para sua decepção, a governanta a esperava. E acompanhada.
- Bom
dia, senhorita Lucca. – A velha bruxa lhe dava arrepios. Tinha grossas olheiras
e um rosto tão enrugado e cinzento que parecia uma velha capa viagem. – Está vinte minutos atrasada.
- Desculpe.
– Estudou a outra mulher com toda a perspicácia que uma criança de nove anos
poderia ter. Ela era muito bonita, com a pele morena e um longo cabelo trançado.
Sentiu o ânimo se esvair um pouco. Afinal, a mulher estava com roupas
apropriadas para...
- Esta
é Liessa. – Recomeçou a governanta, com sua voz cadavérica. – Sua nova
professora de dança.
- Bom
dia, mestra Liessa. – Lucca sorriu para a nova professora. Queria sair lá fora
mais do que tudo, e não seria hoje que se daria por vencida.
***
Movia-se furtivamente pela mata, a
maneira natural como os predadores espreitavam, apesar de toda a dificuldade
que a falta de metade das pernas causava. Arrastava-se debilmente algumas
vezes, e tinha de usar um dos braços para ajudar. Sentia um pouco de fome,
visto que mal se alimentara na noite passada, apesar da caçada ter rendido
dezenas de presas abatidas.
No fim das contas, estavam onde o mestre
disse que estariam.
O mestre sempre sabia das coisas, e era
por isso que o odiava.
Não só por isso. Deixara uma das presas
escapar, a fêmea. Ela se mostrara mais perigosa do que qualquer caça antes, e
isso até mesmo o mestre teria de admitir.
Afinal, estaria morto se não fosse praticamente
indestrutível.
Ainda sentia o cheiro da fêmea que lhe
ferira. Estava mais fraco, mas ainda conseguia senti-lo. Perseguiria-a até o
fim dos tempos, se fosse preciso.
Mas outros odores tiraram-lhe a concentração.
Precisava estar preparado para pegá-la.
Desviou-se um pouco para o leste, até
alcançar uma fazenda. Seu corpo estava terrivelmente avariado.
Precisava comer.
***
- Então,
Lucca. – A nova professora sorria com um ar gentil. – Quantos anos você tem?
- Nove.
– Tentava parecer obstinada, como a herdeira do baronato que era. – Faço dez em
sete meses.
Andavam
pelos vastos corredores e alas da mansão, dirigindo-se para o salão das artes.
- Gosta
de dançar?
- Prefiro
ler. – Era verdade. Lucca era dada aos livros mais do que o normal para
qualquer garotinha da sua idade. Ou com o dobro da sua idade. De qualquer
forma, Lucca não tinha contato com outras meninas. – Mas a velha governanta diz
que uma dama deve ser versada em múltiplas habilidades.
- Você
ainda é criança, Lucca. – Disse Liessa quando finalmente adentraram no salão
das artes. – Esqueça a velha por algum tempo, ok?
A
professora abriu a porta do salão com um sorriso, e recebeu uma bela e pura
risada infantil de volta.
- Não
devia falar assim, mestra.
- Por
quê? – A mulher fechou a porta. – Não tenho medo da velha bruxa. E você não
deveria ter. Você é a filha do barão, no fim das contas.
- E
se eu disser que não quero dançar? – Disparou, com toda a sua perspicácia de
quase uma década.
- Então
não dançaremos. – A professora abriu os braços num gesto amplo. – Temos a manhã
livre, então. O que quer fazer?
Lucca
não conseguia acreditar. A professora só podia estar enlouquecendo.
- Quero
ir lá fora. – Disse, com aquele ar sonhador que até então ninguém naquela mansão
teve o prazer de presenciar. – Mas não me deixam.
- Seu
desejo é uma ordem, milady. – Liessa
fez uma mesura. – Conheço um caminho secreto.
Que sorte, pensou
Lucca, extasiada.
***
Depois de horas de intensa dor e agonia,
finalmente estava recuperado. Oito pernas, dois braços e sem quaisquer traços
de queimaduras.
Estava novo em folha, e pronto para
perseguir sua presa.
A fazenda foi então deixada par trás.
Quando voltasse da lavoura no fim do dia, o fazendeiro descobriria estar oito
vacas mais pobre.
Embrenhou-se novamente no bosque. Desta
vez movia-se com agilidade, com toda a desenvoltura que o mestre lhe dera.
Como o odiava. Lembrava do mestre desde
o princípio, quando acordara pela primeira vez depois daquele sonho estranho...
Não conseguia se lembrar...
O cheiro tornou a invadir-lhe as
narinas, fazendo grossos pelos negros se arrepiarem por todo o torso aracnídeo
e pelas costas humanas.
Era ela, a fêmea que quase o matara. Mas
não estava só. Havia...
Outra coisa...
Um cheiro estranho. Carne, sim. Mas
diferente. Não sabia dizer o que era, apenas que era diferente.
Mas sabia que deveria voltar. O mestre
não admitiria que se empenhasse numa caçada pessoal, por vingança. Poderia
levar dias ou meses. Ou anos...
Sabia também que o mestre não tolerava
fracassos. Deixara uma presa escapar, portanto a responsabilidade seria sua.
Era um impasse. Odiava o mestre, sim,
embora não soubesse exatamente o porquê...
Com todos os sentidos aguçados pela
curiosidade, tomou a direção na qual sentia o cheiro da presa.
Partiu, salivando de excitação.
***
Podia vê-las de onde estava,
perfeitamente camuflado pela vegetação ao redor. Duas fêmeas: uma adulta, a que
lhe escapara três dias atrás e lhe ferira como ninguém nunca antes. A outra era
filhote. O cheiro do sangue quente penetrava-lhe pelas narinas, fazendo com que
a bestialidade estivesse prestes a despertar. Mas algo parecia diferente...
A pequenina corria pela grama, descalça
e radiante, iluminada pelos raios do sol matutino. Corria alguns passos, depois
se atirava em meio às flores, rindo como apenas os filhotes humanos eram
capazes.
A fêmea adulta apenas a observava. Percebeu-se
admirando-a como uma igual. Afinal, ela era uma caçadora também. A primeira
presa capaz de feri-lo de verdade. A primeira a conseguir escapar.
Mesmo que agora estivesse ali,
desprotegida. Podia sentir o sangue pulsando sob a pele dela. Sentia os pelos
se eriçarem, apenas ao pensar na refeição que ela lhe proporcionaria.
Mas algo ainda o inquietava. O cheiro da
filhote. Era como algo... Doce. Algo que lhe escapava da cabeça, não importava
o quanto tentasse raciocinar.
O mais estranho era que não queria
matá-la. Muito pelo contrário, queria protegê-la. Queria ficar ali por horas
observando-a sorrir. Sentia-se...
Feliz...
***
Nuke
estava demorando, mas Liessa sabia estar mais nervosa do que deveria. Tinha a
filha do barão consigo, e estava no ponto de encontro. Sabia que o capitão
viria. Passara os últimos dez anos depositando sua fé em Nuke, e o capitão
nunca falhara com ela.
Mas o
monstro que combatera ao lado de Clarke três dias atrás deixara sua marca. Escapara por muito pouco, e doía pensar no parceiro falecido. Nunca encontrara
algo tão perigoso em toda sua vida como caçadora imperial.
Tentava
colocar os sentimentos de lado, mas era difícil. Clarke era mais do que um amigo... Fechou os olhos e respirou
fundo. Precisava da mente limpa.
Olhou
para o gramado onde Lucca corria e pulava como qualquer criança deslumbrada. Tão inocente... Não merece o pai que tem...
O
barão Malkor era o governante daquelas terras há quase cem anos. Era um
necromante poderoso, mestre em uma arte proibida pelo império desde a época do
primeiro imperador. No entanto, o baronato resistia às investidas imperiais.
Um
gênio da magia negra, Malkor era famoso pelo seu dom de manipular coisas vivas
– o monstro que Liessa enfrentou na estalagem era um claro exemplo. Seu
exército era composto por um sem fim de aberrações, uma mais terrível que a
outra.
Além
de tudo mais, era extremamente cruel e impiedoso. A criatura atacara a
estalagem e matou até mesmo os inocentes, apenas na suspeita de espiões
imperiais.
Liessa
olhava Lucca, tão feliz brincando na orla do bosque. E tudo o que conseguia
sentir era pena.
Algo
saiu de dentro da mata rapidamente, e dois segundos bastaram para que Liessa
estivesse no chão, a criatura salivando sobre ela, a terrível boca aberta. Seis
olhos a encaravam.
Tentou
pegar a faca que trazia escondida, mas um golpe rápido do monstro a desarmou.
Cambaleou e caiu para trás.
Viu
os braços terminados em foice se erguerem para o golpe que a levaria para junto
de Clarke. Fechou os olhos.
- Não!
– O grito de Lucca a despertou do devaneio, e os segundos passaram sem que
lâmina alguma lhe ceifasse a vida.
Do
chão, viu a criatura avançar na direção de Lucca.
Tateou
na grama em busca da faca. Quando a encontrou, levantou-se rapidamente, pronta
para correr.
Mas
parou, aturdida demais para entender.
A
criatura estava curvada diante da menina, de cabeça baixa. Lucca afagava-lhe a
cabeça, como se o fizesse a um cão.
- Bom
menino. – Não nega ser a filha do
barão... O que me leva a concluir que não passa de outro monstro.
- Lucca...
O que você...?
- Não
sei, Liessa... Sei que deveria estar com medo, mas não estou. – Sorriu. – Não
se preocupe. Ele não vai nos ferir. Não sei como. Apenas sei.
Liessa
sentiu uma lágrima escorrer pelo rosto. Onde
infernos estou me metendo?
Um
ruído e Lucca estava no chão. Um pequeno dardo colorido no pescoço. Sonífero. São eles.
E
Liessa apenas observou. Viu a criatura se levantar em posição de ataque, ao
passo que sete caçadores imperiais irromperam da mata, de mosquetes nas mãos,
abrindo fogo.
Correu
até Nuke, que recarregava. Nem todos tinham a mesma sorte. O monstro era
extremamente resistente e atacou antes que a segunda saraivada fosse disparada.
Três caçadores caíram perante as lâminas negras daqueles braços antinaturais.
- Que
Merda é essa? – Nuke alcançou o mosquete à Liessa. Tirou uma garrucha do
coldre. – Por acaso foi ele naquela noite?
- Sim.
– Liessa fez pontaria, mas não disparou. – Esqueça a pistola, Nuke, será
inútil. Tem alguma bomba?
O
capitão a encarou, perplexo.
- Recuar!
– Nuke gritou quando o quarto homem caiu. – Recuar! Liessa, pegue a garota.
E os
caçadores restantes correram para o meio das árvores, com a criatura em seu
encalço.
Liessa
ficou para trás, para pegar Lucca, desmaiada em meio à vegetação rasteira.
- Desculpe,
pequenina. Nada pessoal. – Disse ao pegá-la no colo, quando um barulho
ensurdecedor vindo do meio da mata indicava que Nuke tinha algum tipo de
explosivo à disposição. Liessa apressou-se ao seu encontro.
O
capitão estava acompanhado por mais um homem.
De sete, apenas dois restaram...
Estavam
em frente ao que sobrara do monstro. Havia perdido as oito patas de aranha, bem
como um braço. Tinha todo o lado esquerdo em carne viva, chamuscado e
esfumaçando.
- Dóris
tinha uma bomba consigo. – Nuke começou. Liessa nunca vira tanta raiva naqueles
olhos. – Ela se explodiu com ele.
A
criatura tentava debilmente se arrastar na direção deles, tentando se
impulsionar com o único braço.
O
capitão então sacou seu facão e, num acesso de fúria, decepou o braço restante
da criatura, que caiu de lado se retorcendo em meio à silvos e gritos.
- Sua
abominação. – Nuke cuspiu no monstro. – Vamos embora. Ateie fogo neste infeliz.
E o
caçador restante acendeu uma tocha e jogou sobre o monstro, que sequer tinha
pernas para fugir. E os três partiram, levando consigo Lucca como refém.
Agora teremos uma chance, pensou
Liessa, enquanto se afastavam. O monstro queimou e queimou.
Ao menos Clarke foi vingado.
***
Dor. Durante um dia inteiro e uma noite
inteira. A agonia que o consumia e fazia-o querer estar morto. Havia sido assim
desde sempre...
Estava sobre a mesa de operações do
mestre. Sua mesa, na verdade. Tiras de couro prendiam-no pelo corpo aracnídeo,
e não importava o quanto movesse as pernas, a força parecia não ser o
suficiente para libertá-lo.
Demorou a perceber que tinha pernas
novamente, bem como braços. Ergueu-os diante dos olhos: pareciam pesados num
primeiro momento, brilhavam como espadas recém polidas.
- Espero que goste dos aprimoramentos. –
O mestre estava presente, e assustava-lhe o fato de não ter percebido antes. –
Espero que membros reforçados com metal o tornem mais resistente ao fogo e às
explosões.
Fez força para se soltar novamente. Era
sempre assim quando acordava na mesa de procedimentos. Sentia raiva do mestre
por lhe causar tanta dor. Se conseguisse se soltar, poderia matá-lo.
Mas nunca conseguia. O mestre sempre o
persuadia de uma forma ou de outra.
- Levaram a pequena Lucca. – Malkor, seu
mestre, encarou-o no fundo dos olhos. Aqueles olhos azuis conseguiam fazê-lo se
sentir aterrorizado. – Pensam que podem jogar com a vida daquela garotinha
inocente.
Debateu-se, de raiva e ódio. Mas não
pelo mestre. Lembrava-se dos caçadores. Da explosão e do fogo. Queria vingança,
mas também se lembrava da filhote.
E queria protegê-la, o que era cada vez
mais estranho.
- Vou soltá-lo. – O mestre estalou os
dedos e as correias que o seguravam se soltaram. Ergueu-se como o maior de
todos os predadores, testando seus novos membros de metal. Saltou até o teto e
encarou o mestre.
Conseguiria matá-lo?
Testou as foices dos braços, uma contra
a outra, produzindo faíscas. Sentia-se forte.
O mais terrível dentre os predadores.
- Sei que conseguirá encontrá-la. –
Malkor sentou-se. Estava vulnerável. – Traga Lucca de volta.
Desceu. Rápido como uma águia que
mergulha para alcançar sua presa.
Ficou cara a cara com Malkor. Aqueles terríveis
olhos azuis encararam seus três pares de olhos sem vacilar.
- Quer me matar, não é? – O mestre
sorriu, mostrando uma boca cheia de dentes insuportavelmente brancos. – Eu sei
que quer.
Virou a palma da mão direita para cima,
conjurando um pequeno globo azul escuro.
- Isto é um presente para você. –
Empurrou o globo até a criatura, fazendo-o penetrar em sua cabeça. Era como uma
nuvem de vapor, só que mais denso. – Para depois de libertar e trazer de volta
a pequena Lucca. Se quiser me matar depois disso, estarei à disposição.
Gritou. Tão alto o quanto podia. Deixou
o mestre para trás, com todos os seus zumbis e criaturas horrendas.
Tinha uma caçada para terminar, afinal.
***
Liessa
abriu os olhos e espreguiçou-se. O sono das últimas horas fizera um bem
extremamente necessário. Estava completamente revigorada.
- Traidora.
– A voz de Lucca trouxe-a de volta à realidade. A garotinha estava sob seus
cuidados, de forma que a amarrou a uma cadeira para que pudesse dormir. Havia
outra caçadora no quarto, Célia, que se ocupava em desmontar e limpar as peças
de suas armas.
- A
cadelinha fala, no fim das contas. – Liessa não gostava nem um pouco de Célia,
da forma irreverente com que ela tratava todos a sua volta.
- Lucca.
– Liessa se aproximou da garotinha. – Sabe o que está acontecendo?
- Meu
pai é o barão Malkor. – Disse com arrogância. – É o senhor legítimo destas
terras. Vocês são invasores do império.
- Você
é inteligente, Lucca, parabéns. – Liessa tinha de admitir que a educação da
pequena era exemplar. – Você andou lendo bastante. Mas antes de seu pai o
baronato pertencia ao império. Em outras palavras, ele é o rebelde. E é um
tirano.
- Não
importa. – Lucca deu de ombros. – Papai vai mandar alguns monstros, como sempre
faz. Vocês não tem chance.
Liessa
sentiu um arrepio. Então ela sabe sobre o
pai. O que importa? Ela é jovem demais para entender as consequências de mexer
com magia negra.
- Cale
a merda dessa boca, cadelinha. – Célia deu um tapa na menina, fazendo um filete
de sangue escorrer daquela boca pequena. – Seu pai vai ser derrotado em breve.
Se ele não se entregar, matamos você.
- Célia!
– Liessa a repreendeu.
- O
quê? – Deu de ombros. Olhou com desdém para a menina. – Não é você quem faz as
ameaças. Você já está aqui há dois dias, e nada dos monstros do seu pai. Ele
deve estar pensando em um tipo de acordo agora mesmo. Acha mesmo que ele vai...
Um
barulho ensurdecedor fez com que Célia se calasse.
- Uma
explosão... – Liessa começou, quando o som de tiros começou a preencher o ar.
A
porta se abriu com um baque, e Nuke entrou apressado. Tinha o mosquete em mãos:
- Liessa,
pegue a menina. – Estava assustado e apavorado. – Ele voltou.
- Quem?
– Liessa começou a desamarrar Lucca, enquanto Célia começou a montar sua arma. O
capitão começou a carregar o mosquete, apressado e trêmulo. –Nuke, o que está
acontecendo?
- Eu
o matei, Liessa, você mesmo viu. – Com a arma já carregada, encarou-a: -
Deixamos ele queimando no bosque.
- Não
me diga que aquela coisa...
- Ele
me quer, eu sei. – Nuke disse num tom sombrio, em meio ao som de tiros que
vinham lá de fora. – Nunca vi tanta raiva num único ser.
Liessa
terminou de desamarrar a garotinha. O capitão continuou:
- Leve
a menina daqui. Ela é nosso último trunfo. Célia, você vem com...
E a
porta foi derrubada. A criatura que entrou era a mesma do bosque, Liessa tinha
certeza.
Estava,
é claro, diferente. Estava completamente revestido de metal...
Não,
a coisa era metal.
Avançou
rapidamente e golpeou Nuke antes que pudesse disparar com o mosquete.
Liessa
puxou Lucca para o outro lado do quarto, para a janela.
Pulou
para a rua. Mas como era difícil tendo de arrastar a menina.
A
criatura não tardou a persegui-la, pois Célia não lhe deu o mínimo de trabalho.
Havia outros caçadores, que se colocavam no caminho da fera, mas nenhum era
capaz de fazer qualquer mal ao monstro em sua nova carapaça.
E
Liessa correu com Lucca, enquanto seus companheiros tombavam às suas costas. Um
a um, aquela maldita criatura os destruía como se fossem moscas.
No
fim, fora encurralada. Entrara no armazém que usavam como armorial, pensando em
talvez causar uma explosão como fizera naquela noite na taverna. Mas não havia
nenhum carroção de pólvora. Os poucos barris restantes sequer estavam
agrupados.
Sem
ter alternativa, pegou um mosquete em meio a tantos outros. Descarregado, mas equipado com uma
baioneta.
Morreria
lutando, no fim das contas.
Encarou
a criatura nos olhos quando ela entrou pela porta do galpão. O corpo de aranha
sempre lhe dava arrepios, a forma como se movia, desafiando a natureza.
Soltou
Lucca, que correu para junto de seu monstro salvador.
Liessa
procurou por um ponto fraco. O torso humano não era revestido de metal. Se
tinha alguma chance, só saberia se tentasse...
Atiraram-se
um contra o outro.
Se é para morrer, ao menos o levarei
comigo...
***
Acertou a fêmea humana na altura do
peito, enterrando fundo sua foice na carne. Mas também sentiu a picada do metal
frio: a ponta da arma da oponente a trespassar-lhe o peito.
Sentiu as forças deixarem-no de repente.
Seria a morte que tanto esperara nos momentos de agonia? Segundo o mestre, não
poderia morrer...
A esfera azul que o mestre lhe dera
então saiu de seu crânio, flutuando como uma nuvem, e agora sabia exatamente o
que era.
Era uma lembrança...
Estava mortalmente ferido, e não lhe
restava muito tempo. Humano frágil. Lembrava-se da dor que sentia naquele
momento. Era muito mais limpa do que a que estava acostumado agora.
Ergueu a mão direita e a admirou. A
esquerda não poderia, pois havia sido arrancada. Tentou levantar, e percebeu
que já não haviam pernas. Estavam há alguns metros de seu corpo, inertes no
chão.
- Você já deveria estar morto. – O barão
aproximara-se dele. Vestia-se de forma elegante, como sempre. Havia uma escolta
de soldados mortos, mas não conseguia se lembrar dos detalhes disso. Não era
importante.
- A fazenda... – Disse, de forma
automática. Afinal, era uma lembrança. – Maril... Deena... Lucca.
- A fazenda foi saqueada e queimada. Sua
família está morta. – Malkor foi firme ao fazer a afirmação. – Os corpos delas
já foram recolhidos.
- Malditos imperiais... – Sentiu os olhos
se encherem de lágrimas. Sentiu raiva. Queria gritar. – Éramos simples
fazendeiros...
- Fazendeiros que plantavam nas terras do
barão Malkor. – Chegou mais perto, e foi a primeira vez que reparou naqueles
olhos azuis. – Minhas terras. Os imperiais não respeitam meu povo. Tratam vocês
como lixo.
- Para o inferno com todos eles. – Olhou
para o seu senhor, também com raiva dele. Como barão, deveria tê-los protegido.
– Para o inferno com você também.
- Você é corajoso. – Malkor sorriu.
Ergueu a mão: - Tragam-na.
E dois soldados mortos trouxeram o corpo
da pequena Lucca, sobre uma padiola. Estava branca como gelo, suja de terra e
sangue.
Envolta numa espécie de aura esverdeada.
- Lucca. – Era a sua mais jovem. Cinco
anos apenas. – O que foi que você fez?
- Impedi que ela partisse totalmente. –
Colocou a mão sobre a testa da criança. – Ainda posso salvá-la.
- Salve-a, então. – Sentiu novamente as
lágrimas. – Minha pequena Lucca.
- O que me dará em troca?
- Qualquer coisa.
- Conhece a natureza de meu trabalho, não
é? – Abriu os braços num gesto amplo. Sabia do que tudo se tratava. O barão era
dado às artes negras. Seu exército era composto por mortos vivos e outras
abominações.
- Sim. – Se fosse para Lucca viver, faria
o que fosse. – Mas, precisa da minha permissão? Não bastaria me levar e me
transformar numa dessas... coisas?
- Não é assim que funciona. – Franziu o
cenho. – Muitas vezes é, mas os resultados não são muito expressivos. Em outras
palavras, tenho zumbis demais. Chegou a hora de dar um novo passo. – Respirou
fundo antes de continuar: - Há um experimento que sempre quis testar, mas temo
que a dor seja num nível inimaginável. Apenas alguém com uma motivação forte o
bastante, sedento por vingança, suportaria. O que me diz?
- Vou poder matar imperiais, depois?
- Tantos quantos se colocarem em nosso
caminho. Farei de você o maior dentre os predadores.
- E quanto à Lucca?
- Ela terá um lugar em minha mansão. Será
adotada como minha filha, e terá uma educação digna de uma dama.
- Consegue apagar as memórias dela? Temo
que ela tenha sofrido demais hoje.
- Consigo. Temos um acordo então?
- Espere. Que garantia eu tenho?
- Esperto. – Malkor então puxou um punhal
de dentro das vestes. Fez um corte na palma da mão direita e a estendeu. – Um
pacto com o meu sangue. Cuidarei de Lucca como se fosse minha filha, e que essa
promessa jamais possa ser quebrada.
- Ótimo. – Estendeu a própria mão e
apertou a de Malkor, selando o pacto.
Deu uma última olhada em Lucca.
Eu te amo, filha...
Estava frente à frente com a fêmea
humana, um acertado pelo golpe do outro.
- Por que você não morre? – A mulher
chorou, tentando enterrar sua arma mais fundo.
Mas era inútil. O mestre cuidara
daquilo. Não morreria com um ferimento destes.
Usou o outro braço foice para colocar um
fim na vida da sua presa mais desafiadora, com um corte limpo e rápido.
Ao menos alguns podiam simplesmente
morrer.
A pequena Lucca veio correndo ao seu
encontro. Queria contar-lhe tudo, e dizer mais uma vez que a amava.
Mas não podia falar. Então seria inútil.
- Vamos para casa? – Perguntou a menina,
subindo em suas costas.
E partiram, de volta para o mestre.
***
Papai tinha muitos monstros, e por isso
era perigoso ir lá fora. Lucca fizera dessa sua verdade, conforme
os anos iam passando e passando. Sempre que podia ia escondida até o bosque,
para rever seu monstro aranha. Ás vezes ele aparecia, mas muitas vezes não.
Fosse
como fosse, gostava dele. Não saberia dizer exatamente o porquê, a não ser o
fato de a fera ter lhe salvado a vida. Mas sentia que havia algo mais.
Talvez
um dia encontrasse a resposta.
***
Então, o que acharam? Eu havia planejado uma história mais longa centrada em Malkor, o necromante. Talvez algum dia eu desenvolva a ideia, quem sabe...
#1; #2; #3 - Imagens do jogo Skyrim.
adorei... fiquei hipnotizada!!
ResponderExcluirQue bom que VC gostou, Anon! Obrigado pela leitura
ExcluirAmei Wag, parabéns!
ResponderExcluirQue bom que você gostou, Dani, obrigado!
ExcluirMuito interessante! Uma leitura suave, mas com pontos de leitura intensa, me fazendo desejar mais informações. Adoro criaturas monstruosas! Parabéns. Ótimo texto!
ResponderExcluirObrigado pela leitura, Fernanda, que bom que você gostou!
ExcluirCurti muito.
ResponderExcluirAgora será legal um contraponto do imperio,eles provavelmente tem magos poderosos tambem.
Obrigado pela leitura, Miguel!
ExcluirNão tinha pensado em explorar o lado dos imperiais, mas vc e deu uma ideia interessante!
Que sabe o que posso criar a partir disto?
Forte abraço!