sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Melhor Amigo


   Saudações, amigos leitores. Este conto foi publicado na antologia Monstros Entre Nós, lançada pela Darda Editora em 2017. Mais informações sobre o livro ao final do conto.




Melhor amigo

Cauã tinha um segredo. Algo que ele guardava para si mais do que qualquer coisa na vida.
Seus pais sequer sabiam. Ninguém sabia.
Cauã tinha um único amigo.
E ele vivia embaixo da sua cama desde que tinha cinco anos.

*
O despertador tocava pela terceira vez. A primeira havia sido às cinco e quarenta, e Cauã sequer percebera.
Revirou-se. Os minutos extras da soneca nunca eram o suficiente. Como qualquer rapaz de dezesseis anos, ficar acordado até altas horas da madrugada no computador tinha lá seus efeitos.
Cauã resmungou e se virou, puxando as cobertas sobre o rosto. Estava disposto a deixar o tempo correr.
Um tentáculo cinza, viscoso e cheio de ventosas saiu debaixo da cama e desligou o despertador. Outros cinco tentáculos envolveram a cama pelos lados e a sacudiram, de um lado para o outro até que Cauã fosse arremessado ao chão em meio às cobertas;
— Ha, ha. – A voz carregada da preguiça matinal enquanto se esforçava para sair do meio do bolo de cobertores. – Muito engraçado.
A coisa encolheu os tentáculos. Era cinzenta, do tamanho de uma bola de basquete, coberta por uma espécie de pelugem espetada. Não possuía boca visível: apenas um único olho, redondo e arregalado de pupila azul. Sacudia-se freneticamente.
— Eu sei, eu sei. – Cauã levantou, relutante. — Tenho que ir para a escola.
A criatura se sacudiu novamente, eriçando os pelos.
— O quê? Quer ir comigo? – Cauã procurava pelas roupas, mas não deixou de notar a criatura inquieta. Sempre entendia o que o amigo queria dizer, embora não soubesse como nem por quê. — Se você se comportar...
— Cauã, com quem está falando? – a mãe pelo outro lado da porta. — Tudo bem?
— Sim, mãe. É o Leo no telefone – inventou essa na hora. Não tinha um amigo chamado Leo – perguntando se consegui terminar o trabalho que era pra hoje.
— Tudo bem – respondeu ela. — Não vá se atrasar.
Cauã terminou de se vestir enquanto a criatura o observava. Às vezes, ficava se perguntando o que exatamente seria aquilo. Lembrava-se da primeira vez que se encontraram quando tinha cinco anos. Acordara no meio da noite com uma luz forte vinda pela janela. Toda a vizinhança saíra para a rua na madrugada a fim de ver do que se tratava. Nada, como seu pai havia dito na manhã seguinte. “Algum avião voando baixo ou algo assim...” Ninguém sabia, mas fora naquela noite que Cauã fizera seu primeiro e único amigo quando o encontrara num arbusto no quintal.
Era pequeno na época, do tamanho de uma bolinha de tênis; e não tinha pelos.
Terminou de se arrumar e desceu, levando o amigo na mochila. Embora não gostasse de levá-lo por aí, sentia seu nervosismo.
Ao passar pela cozinha, despediu-se da mãe e do pai, como sempre fazia:
— Boa aula, filho. – A mãe deu-lhe um beijo. — Volta cedo hoje?
— Acho que depois das três.
— Então coma alguma coisa ao meio-dia. – A mãe sempre se preocupava demais. — Dê algum dinheiro a ele, Fernando.
— Vintão! – exclamou quando o pai lhe alcançou o dinheiro do almoço. — Valeu, pai.
— Se cuida, hein?! – O pai notou o volume da mochila. — O que está levando aí?
— A bola de basquete – mentiu. — Reservamos a quadra da escola para depois da aula.
E com essa mentira saiu, levando o amigo dentro da mochila. Teria de pegar um ônibus e o metrô até a escola.
Mal sabia que não veria seus pais outra vez.
*
A aula de Língua Portuguesa era chata como sempre, e, como de costume, lutava para não dormir.
Até que algo surpreendente cortou o ar tedioso que aquela aula conseguia ter como nenhuma outra. De seu estado de quase sono, Cauã percebeu todos os colegas correndo até a janela.
Estava escuro, mais do que de deveria estar. A luz da manhã que sempre entrava pelas janelas estava sendo bloqueada por alguma coisa que os alunos se amontoavam para ver...
Acotovelou-se em meio aos colegas e então viu.
Era grande, maior do que qualquer coisa que Cauã já tivesse visto antes. Por entre as nuvens, cortava os céus e parecia cobrir toda a cidade.
Era uma nave. Cauã ficou em choque num primeiro momento. Muitos de seus colegas também estavam em silêncio. Outros gritavam eufóricos enquanto poucos começavam a chorar.
Olhou de relance para a classe, onde estivera sentado. Sua mochila parecia pular. Seu amigo queria sair.
Não pensou duas vezes e correu até a mochila, pegou-a e saiu correndo da sala antes que algum idiota visse e colocasse tudo a perder.
Mesmo sendo perto das onze da manhã, parecia noite. Todos no pátio olhavam para a nave sobre a escola. Avançava cada vez mais.
Correu até os fundos, onde tinha certeza que ninguém o veria. Abriu a mochila e retirou a criatura, que tremia freneticamente, todo arrepiado.
— O que foi? – Sentia o medo do amigo. Abraçou-o. — Calma, calma...
Mas não adiantava. Nunca o havia visto assim.
— Você está com medo, não é? – Segurava-o com força. Deve ser aquela nave. Apontou para cima. — Está com medo deles?
Mas ele não parava de tremer.
Preciso dar o fora daqui.”
*
Deixara a escola para trás, e agora se dirigia ao centro da cidade. Caminhara por horas, e sentia os pés protestarem. A nave já não estava mais sobre eles, pois partira no sentido contrário ao que ela avançava.
Ainda a via no céu, é claro, dirigindo-se cada vez mais para o leste, mesma direção para onde ficava sua casa. Queria distância daquela coisa, pois ela havia deixado seu amigo apavorado.
Tentou ligar para os pais, mas o celular estava sem sinal. Sabia que eles não estariam em casa, pois trabalhavam na cidade vizinha.
Sabia apenas que se continuasse na atual direção, cedo ou tarde chegaria ao trabalho da mãe. Esperava encontrá-la.
Seu monstro estava mais tranquilo agora, talvez dormindo. Deixara-o guardado, pois as ruas estavam apinhadas de gente: pessoas corriam para dentro e fora das casas, arrumando as malas e partindo, a pé ou de carro. Havia também os saqueadores, é claro, se aproveitando das casas que eram abandonadas.
Não havia polícia ou exército. Nada, como Cauã acabou notando apenas depois de algumas horas na estrada. “Fugiram”, foi o primeiro pensamento que lhe ocorreu, “ou estão tentando salvar as próprias famílias de uma invasão alienígena”.
Jamais os culparia por isso. Depois de encontrar com a mãe, desejava procurar pelo pai.
Sentiu a mochila se mexer às suas costas. “Deve ter acordado”. Entrou num pátio próximo e abaixou-se atrás do muro.
— O que foi? – perguntou ao abrir uma fresta. Aquele grande e redondo olho o observava. Sabia do que se tratava. Sempre sabia. — Também estou com fome.
Havia um supermercado a poucos minutos de onde estava. Não queria se arriscar muito, ainda mais com o amigo dentro da mochila.
Mas também estava com uma fome dos infernos. Mais cedo ou mais tarde, teria de comer.
Tornou a fechar a mochila e se levantou. Sabia para onde ir.
*
As portas do supermercado estavam escancaradas. Entrou com todo o cuidado e fazendo o maior silêncio possível, mesmo o lugar aparentando estar deserto.
Muito das mercadorias estavam pelo chão. Embalagens rasgadas, pisoteadas, violadas.
Esgueirou-se com cuidado, conforme procurava algo para comer.
Não havia mais pães, sua primeira alternativa. Ainda havia carne no açougue, mas alimento cru não serviria agora.
Contentou-se com algumas bolachas. Sentou-se num canto e abriu a mochila, permitindo que seu amigo saísse. Os pelos estavam eriçados, pois estava visivelmente amedrontado, embora muito menos do que antes.
Devorou tudo o que lhe foi oferecido, com tamanha voracidade jamais vista por Cauã. Alimentava-se de uma forma bem peculiar: Tentáculos saíam de seu corpo, e usava-os para comprimir os alimentos contra si próprio, absorvendo-os pela pele.
— Vá com calma – tentou tranquilizá-lo. Não gostava de vê-lo assim. — Está tudo bem agora. A nave já está longe, ok?
Tentava parecer calmo, mas era difícil. Sentia cada vez mais saudades da mãe e do pai, e temia não vê-los novamente. O celular estava sem sinal há horas, desde que estava sob a nave.
Observou enquanto o monstro se alimentava mais e mais; segurando-se para não chorar. A vida como era estava acabada, e não sabia o que seria dali para frente.
Um barulho despertou-o de seus devaneios. Pegou a criatura e apertou-a junto a si.
“Vozes...” Duas ou mais pessoas. Podia ouvi-las conversando. Pareciam estar entrando pela porta lá na frente.
— Viu toda aquela luz? – Era uma voz de mulher. — O que será que aconteceu?
— Devem ter destruído a base aérea. – A segunda voz era de homem, e tinha um irritante ar desdenhoso. — Como se precisassem disso. Os aviões da base são lixo.
— Fala baixo. Pode ter alguém escondido aqui. Quer outra surpresa?
— Ah, vá se catar! – O homem parecia estar derrubando tudo o que encontrava, fazendo barulho de propósito. — Está vendo? Não tem ninguém aqui.
Cauã concentrou-se no silêncio. As vozes pareciam se aproximar. Se ficasse onde estava, seria encontrado.
Tentou sair sem fazer barulho. As prateleiras eram altas, então poderia andar sem ser visto. Encaminhou-se em direção ao fundo do supermercado.
E deu de cara com a mulher, que apareceu ao final do corredor.
— Mas o quê? – Viu o nojo no rosto dela ao ver a bola de pelos em seu colo. — Socorro, Pedro!
Cauã deu-lhe as costas e preparou-se para correr, mas se deparou com Pedro, que tinha uma barra de ferro nas mãos.
— Mas o que é...? – recuou diante da visão da criatura, mas não vacilou. Ergueu a barra e golpeou.
O golpe arrancou a criatura de suas mãos, atirando-a ao chão e espalhando gosma por todos os lados. A típica crueldade humana misturada ao medo do desconhecido.
— Não! – Cauã gritou, antes de ser atingido na cabeça.
Caiu, zonzo. O mundo transformado em um borrão e girando...
Girando...
— Que coisa é essa? – Não sabia dizer de quem era a voz. Parecia distante... — Será que é um deles?
— Deve ser. Está se mexendo. Mate essa coisa.
— E o garoto? O que será que estava fazendo com ele?
— Devia estar controlando a mente dele ou algo assim. A gente vê esse tipo de coisa na tevê. Mata logo essa coisa.
Tentou dizer que não, impedir que seu melhor amigo fosse morto. Mas não consegui falar ou se mexer. Estava morrendo também.
Estava quase fechando os olhos quando começou a ouvir os gritos.
Devia estar delirando. Só podia estar delirando...
*
Abriu os olhos devagar, ainda meio zonzo. A criatura estava sobre seu peito, envolvendo sua cabeça com um dos tentáculos.
Estava sendo curado, o que era novidade.
— Obrigado – disse, depois de se sentar. Em seu colo, o monstro se sacudiu de leve.
Ao redor deles, em meio às mercadorias espalhadas e violadas, estavam os agressores inconscientes.
Não sabia que a criatura tinha formas de se defender. Lembrou-se do que aconteceu de manhã, quando ele ergueu a cama e sacudiu, derrubando-o. Era o máximo de força que já a havia visto demonstrar.
— Vamos embora – levantou-se, evitando olhar para os corpos – antes que mais pessoas apareçam.
Até que encontrasse os pais, Cauã sabia que seria apenas ele e seu amigo.
Era o seu segredo, seu monstro debaixo da cama.
Monstro? Talvez. Mas sabia que não deveria temê-lo.
Porque os verdadeiros monstros nasciam e cresciam na Terra, aos milhões, todos os dias.






Então, o que acharam? Opiniões são sempre bem vindas.

"Melhor Amigo" foi o meu primeiro conto publicado. A antologia Monstros Entre Nós foi organizada pelo Davi Paiva, e teve como temática explorar a relação entre humanoides e criaturas monstruosas. Além do texto acima, a coletânea conta com mais treze contos de diferentes autores. 

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