quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

A Jóia do Reino - Parte III - Alguns minutos antes da meia noite...

Ainda não leu os primeiros capítulos? clique no link do Capítulo I e do Capítulo II.

A Jóia do Reino - Parte III - Alguns minutos antes da meia noite...



Vicky mergulhou o esfregão na água preta do balde, depois o torceu e tornou a mergulhá-lo. Duas, três, quatro vezes, antes de voltar a esfregar o chão.
Já passava da meia noite quando se levantou e contemplou seu trabalho.
Não era um piso muito bonito, para falar a verdade, mas pelo menos estava limpo.
Bocejou, os olhos relutando em se manterem abertos. “Vá dormir, pois amanhã você tem aula cedo”, haviam sido as palavras de despedida do reitor, horas antes.
Sentia, é claro, o corpo cansado. Era como se estivesse se movendo no modo automático desde o início da semana, quando a rotina de aulas e castigos se tornou mais intensa devido à proximidade do final de mais um período letivo.
Seria uma longa descida até os dormitórios, mas pelo menos era sua última noite de limpeza na Torre da Magia Volátil. De todos os castigos, este havia sido o mais... complicado, por conta das coisas estranhas que normalmente tinha de limpar quando, por exemplo, um transfigurador falhava em algum experimento.
Desceu as escadas como sempre fazia, e depois guardou os materiais de limpeza na sala do zelador.
Eu limparia o piso da torre pelo resto do ano se pudesse ter o meu cajado de volta...
Sacudiu a cabeça. Não adiantava se lamentar.
Por hora, se contentaria com o sono, mesmo que fosse apenas por duas ou três horas.
Encaminhou-se para os dormitórios, mas sequer chegou ao seu destino.
Algo chamou sua atenção, um vislumbre de uma sombra ao final de uma das galerias.
Ou melhor, duas sombras.
Resolveu segui-las, para averiguar do que se tratava. Sentiu que sua breve soneca acabara de ir por água abaixo.

***
Izel e Nico esgueiravam-se pelos corredores desertos da academia. Sabiam apenas que a jóia se encontrava no alto da Torre da Administração.
– Então, pra que lado fica essa tal torre de amistração? – Perguntou o homem coelho, quando o corredor em que estavam se abriu em três novas possibilidades de caminhos.
– Segundo as instruções do contrato, - Izel pensou um pouco. – Era a torre central, a maior de todas.
– Como vamos saber qual a maior de todas se estamos dentro?
– Me diz você. Não sente nada?
– Sou um coelho. Não um cão farejador.
– Me refiro ao sentido de ladrão.
– Certo. – Nico concentrou-se, olhando para todos os caminhos possíveis por alguns instantes. O sentido de ladrão era algo comum a muitos homens coelho. Era como algum tipo de... senso de perigo. Os coelhos, geralmente covardes e fugitivos por natureza, sentiam o perigo iminente no ar. Característica de fato herdada pelos coelhos humanoides, bastava Nico sentir qual dos caminhos a seguir representava encrenca.
– Não temos a noite toda. – Izel observou.
– Acalme-se, está bem? – Fechou os olhos, como se para se concentrar mais. Depois de alguns instantes, apontou para o caminho da direita. – Acho que não dá pra ir por ali.
– Então esse é o nosso caminho. – Tomou à dianteira e começou a caminhar na direção onde o amigo apontara.
Depois de alguns passos, o corredor se transformou numa escadaria circular. Havia portas ao longo do caminho, mas Izel não estava preocupado com elas.
À medida que subiam, Nico tremia de medo ao eu lado.
Estamos no caminho certo, pensou.
Esta noite entrará para a história.
De fato, aquela noite entraria para a história. Só não da forma que Izel imaginava.

***

Ao lado da academia de magos ficava o palácio real. Na eterna competição entre as duas construções sobre qual era a maior e mais majestosa, o palácio acabava de somar três pontos por conta do incêndio ocorrido mais cedo.
No salão principal, a família real estava à mesa. Era a mesa mais longa do reino, como era a tradição em muitos castelos a mesa real ser estupidamente longa.
Além da realeza, a guarda real estava presente. Cada membro da família real possuía um escudo juramentado, que servia até o dia de sua morte, e ficavam de prontidão até mesmo durante as refeições. Afinal, nunca dava para saber se o frango ou o porco ousariam algum tipo de atentado.
– Um dia desses, esses imbecis hão de nos matar! – Disse a Rainha, entre uma mordida e outra numa generosa coxa de frango. – O que foi que houve desta vez?
– Pelo que ouvi, algum idiota tentou usar fogo na biblioteca. – Respondeu a Princesa, com seu costumeiro ar de desdém. Tomou um longo gole de vinho, depois estendeu o copo para que uma de suas criadas o enchesse.
– E seu pai diz que eles são as mentes do futuro. – Descartou o osso, para servir-se de outra coxa suculenta.
O Rei revirou os olhos.
– Os magos são as mentes do futuro. – Defendeu-se, como o estrategista que era. Embora fosse mais fácil defender o reino de um exército invasor do que seu ego das investidas da esposa. – Sem eles, ainda estaríamos batendo pedras para fazer fogo.
– Ah, por favor, está exagerando!
– Sabe que não estou. – O Rei se colocou na ofensiva. – E a defesa do reino? Sem o batalhão arcano, precisaríamos de um exército convencional. Imagine os custos com armas, armaduras, cavalos e treinamen...
Querido, nós temos um exército convencional.
O Rei se ajeitou na cadeira, meio sem jeito. Sabia que era impossível contra argumentar. Sabia desde antes da conversa começar, e agora se sentia um tolo por ter tentado em vão. Baixou os olhos para encarar o pato assado, que pelo menos não o desafiaria.
A Rainha olhou ao redor, como se procurando pela próxima vítima. Deitou os olhos no Príncipe, alheio à conversa até então.
– Pelos deuses, rapaz! – Tinha algo nos olhos. Aquele brilho monstruoso de alguém que se sente indestrutível. – Tire os pés de cima da mesa!
Nada. O Príncipe tinha não só os pés sobre a mesa, mas a cabeça baixa e os braços caídos, pendendo um de cada lado do corpo.
– Ah, por favor! – Deu um soco na mesa. – Riez, faça a gentileza de acordar este imbecil.
Riez, a guardiã e escudo juramentado do Príncipe, sentiu um calafrio. Também se sentia intimidada pela Rainha. Acontece que vira o Príncipe colocar os pés sobre a mesa e pegar no sono, e jamais imaginou que teria de interferir na soneca real. Além disso...
– Vamos, garota, está surda? – A Rainha novamente, estalando os dedos.
Deu então dois passos à frente, abaixou-se um pouco e tocou o ombro de seu protegido.
– Hum, Alteza... – Balançou-o de leve. – Senhor, por favor, acorde.
– O quê?!? – O Príncipe então acordou, quase caindo da cadeira. Olhou ao redor e endireitou-se rapidamente. – Obrigado, Riez. O que foi que eu perdi?
A guardiã pigarreou e deu dois passos para trás.
– Diga alguma coisa! – Disparou a Rainha para o marido, que ainda encarava a comida. – Pelos deuses, homem, seja o rei!
– Pai?
– Estava dormindo durante o jantar, meu filho.
– Desculpe, hum. – Franziu o cenho. – Acordei cedo demais. Riez e eu acompanhamos o Duque de Lartz até a fronteira esta manhã.
O que, de certa forma, era verdade. Embora apenas Riez soubesse de todos os detalhes sobre as paradas em tavernas e mesas de jogos, as brigas e confusões. Uma viagem de ida de duas horas até a fronteira costumava levar oito na volta, por conta das fanfarronices do Príncipe.
– Muito bem, filho. – O Rei tomou o cálice em suas mãos e bebeu um longo gole. – Espero que o duque tenha apreciado sua estadia aqui.
– Tenho certeza de que sim, pai. – O Príncipe ergueu a taça em saudação e bebeu também.
– Ah, por favor. – A Rainha levantou-se rapidamente, indignada. Olhou para a Princesa: - Sabe, às vezes penso que os deuses me amaldiçoaram no dia em que vocês dois nasceram. Como foi que você não conseguiu sair primeiro?
A Princesa deu de ombros, com desdém.
E a Rainha se retirou.
– Boa noite, querida? – Arriscou o Rei, mas tudo o que ouviu foi a porta do salão batendo com força atrás da esposa. Quando teve certeza de a Rainha já havia ido, suspirou aliviado.
– Este vinho de Lartz. – A Princesa falou devagar, admirando a taça depois de saboreá-lo. – O duque fez muito bem em trazê-lo para nós. É a minha bebida favorita.
– O duque trouxe vinho de sua própria adega? – O Rei pareceu animar-se novamente. – Como eu não sabia disto? Traga aqui.
Uma das criadas pegou a garrafa sobre a mesa e levou até onde estava o Rei. Serviu-o.
– Nisso concordamos, filha. – Ergueu sua taça, triunfante. – O vinho de Lartz é meu favorito também.
Bebeu um longo gole, depois pediu à criada que o servisse novamente. Virou-se para seu guardião:
– Aceita uma taça, sir Dorian?
– Desculpe, senhor. Receio ter de recusar.
 Riez sempre admirara sir Dorian, o guardião do rei. Tão focado em seu trabalho, e um guerreiro como ninguém.
– O duque trouxe vinho? – O príncipe perguntou-lhe baixinho. – Por que ele não me disse?
E Riez percebeu, mas já era tarde.
O duque de Lartz esteve no reino, mas não trouxe bebida alguma.

E o Rei começou a engasgar.

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