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A Jóia do Reino - Parte III - Alguns minutos antes da meia noite...
Vicky
mergulhou o esfregão na água preta do balde, depois o torceu e tornou a
mergulhá-lo. Duas, três, quatro vezes, antes de voltar a esfregar o chão.
Já
passava da meia noite quando se levantou e contemplou seu trabalho.
Não
era um piso muito bonito, para falar a verdade, mas pelo menos estava limpo.
Bocejou,
os olhos relutando em se manterem abertos. “Vá
dormir, pois amanhã você tem aula cedo”, haviam sido as palavras de despedida
do reitor, horas antes.
Sentia,
é claro, o corpo cansado. Era como se estivesse se movendo no modo automático
desde o início da semana, quando a rotina de aulas e castigos se tornou mais
intensa devido à proximidade do final de mais um período letivo.
Seria
uma longa descida até os dormitórios, mas pelo menos era sua última noite de
limpeza na Torre da Magia Volátil. De
todos os castigos, este havia sido o mais... complicado, por conta das coisas
estranhas que normalmente tinha de limpar quando, por exemplo, um
transfigurador falhava em algum experimento.
Desceu
as escadas como sempre fazia, e depois guardou os materiais de limpeza na sala
do zelador.
Eu limparia o piso da torre pelo resto
do ano se pudesse ter o meu cajado de volta...
Sacudiu
a cabeça. Não adiantava se lamentar.
Por
hora, se contentaria com o sono, mesmo que fosse apenas por duas ou três horas.
Encaminhou-se
para os dormitórios, mas sequer chegou ao seu destino.
Algo
chamou sua atenção, um vislumbre de uma sombra ao final de uma das galerias.
Ou
melhor, duas sombras.
Resolveu
segui-las, para averiguar do que se tratava. Sentiu que sua breve soneca
acabara de ir por água abaixo.
***
Izel
e Nico esgueiravam-se pelos corredores desertos da academia. Sabiam apenas que
a jóia se encontrava no alto da Torre da
Administração.
–
Então, pra que lado fica essa tal torre de amistração?
– Perguntou o homem coelho, quando o corredor em que estavam se abriu em três
novas possibilidades de caminhos.
–
Segundo as instruções do contrato, - Izel pensou um pouco. – Era a torre
central, a maior de todas.
–
Como vamos saber qual a maior de todas se estamos dentro?
– Me
diz você. Não sente nada?
–
Sou um coelho. Não um cão farejador.
– Me
refiro ao sentido de ladrão.
–
Certo. – Nico concentrou-se, olhando para todos os caminhos possíveis por alguns
instantes. O sentido de ladrão era algo comum a muitos homens coelho. Era como
algum tipo de... senso de perigo. Os coelhos, geralmente covardes e fugitivos
por natureza, sentiam o perigo iminente no ar. Característica de fato herdada
pelos coelhos humanoides, bastava Nico sentir
qual dos caminhos a seguir representava encrenca.
–
Não temos a noite toda. – Izel observou.
–
Acalme-se, está bem? – Fechou os olhos, como se para se concentrar mais. Depois
de alguns instantes, apontou para o caminho da direita. – Acho que não dá pra
ir por ali.
–
Então esse é o nosso caminho. – Tomou à dianteira e começou a caminhar na
direção onde o amigo apontara.
Depois
de alguns passos, o corredor se transformou numa escadaria circular. Havia
portas ao longo do caminho, mas Izel não estava preocupado com elas.
À
medida que subiam, Nico tremia de medo ao eu lado.
Estamos no caminho certo, pensou.
Esta noite entrará para a história.
De
fato, aquela noite entraria para a história. Só não da forma que Izel
imaginava.
***
Ao
lado da academia de magos ficava o palácio real. Na eterna competição entre as
duas construções sobre qual era a maior e mais majestosa, o palácio acabava de
somar três pontos por conta do incêndio ocorrido mais cedo.
No
salão principal, a família real estava à mesa. Era a mesa mais longa do reino,
como era a tradição em muitos castelos a mesa real ser estupidamente longa.
Além
da realeza, a guarda real estava presente. Cada membro da família real possuía
um escudo juramentado, que servia até o dia de sua morte, e ficavam de
prontidão até mesmo durante as refeições. Afinal, nunca dava para saber se o frango ou o porco ousariam algum tipo de atentado.
– Um
dia desses, esses imbecis hão de nos matar! – Disse a Rainha, entre uma mordida
e outra numa generosa coxa de frango. – O que foi que houve desta vez?
–
Pelo que ouvi, algum idiota tentou usar fogo na biblioteca. – Respondeu a
Princesa, com seu costumeiro ar de desdém. Tomou um longo gole de vinho, depois
estendeu o copo para que uma de suas criadas o enchesse.
– E
seu pai diz que eles são as mentes do
futuro. – Descartou o osso, para servir-se de outra coxa suculenta.
O
Rei revirou os olhos.
– Os
magos são as mentes do futuro. –
Defendeu-se, como o estrategista que era. Embora fosse mais fácil defender o
reino de um exército invasor do que seu ego das investidas da esposa. – Sem
eles, ainda estaríamos batendo pedras para fazer fogo.
–
Ah, por favor, está exagerando!
–
Sabe que não estou. – O Rei se colocou na ofensiva. – E a defesa do reino? Sem
o batalhão arcano, precisaríamos de um exército convencional. Imagine os custos
com armas, armaduras, cavalos e treinamen...
– Querido, nós temos um exército convencional.
O
Rei se ajeitou na cadeira, meio sem jeito. Sabia que era impossível contra
argumentar. Sabia desde antes da conversa começar, e agora se sentia um tolo
por ter tentado em vão. Baixou os olhos para encarar o pato assado, que pelo
menos não o desafiaria.
A
Rainha olhou ao redor, como se procurando pela próxima vítima. Deitou os olhos
no Príncipe, alheio à conversa até então.
–
Pelos deuses, rapaz! – Tinha algo nos olhos. Aquele brilho monstruoso de alguém
que se sente indestrutível. – Tire os pés
de cima da mesa!
Nada.
O Príncipe tinha não só os pés sobre a mesa, mas a cabeça baixa e os braços
caídos, pendendo um de cada lado do corpo.
–
Ah, por favor! – Deu um soco na mesa. – Riez, faça a gentileza de acordar este
imbecil.
Riez,
a guardiã e escudo juramentado do Príncipe, sentiu um calafrio. Também se
sentia intimidada pela Rainha. Acontece que vira o Príncipe colocar os pés
sobre a mesa e pegar no sono, e jamais imaginou que teria de interferir na
soneca real. Além disso...
– Vamos,
garota, está surda? – A Rainha novamente, estalando os dedos.
Deu
então dois passos à frente, abaixou-se um pouco e tocou o ombro de seu
protegido.
–
Hum, Alteza... – Balançou-o de leve. – Senhor, por favor, acorde.
– O
quê?!? – O Príncipe então acordou, quase caindo da cadeira. Olhou ao redor e
endireitou-se rapidamente. – Obrigado, Riez. O que foi que eu perdi?
A
guardiã pigarreou e deu dois passos para trás.
–
Diga alguma coisa! – Disparou a Rainha para o marido, que ainda encarava a
comida. – Pelos deuses, homem, seja o rei!
–
Pai?
–
Estava dormindo durante o jantar, meu filho.
–
Desculpe, hum. – Franziu o cenho. – Acordei cedo demais. Riez e eu acompanhamos
o Duque de Lartz até a fronteira esta manhã.
O
que, de certa forma, era verdade. Embora apenas Riez soubesse de todos os
detalhes sobre as paradas em tavernas e mesas de jogos, as brigas e confusões.
Uma viagem de ida de duas horas até a fronteira costumava levar oito na volta,
por conta das fanfarronices do Príncipe.
– Muito
bem, filho. – O Rei tomou o cálice em suas mãos e bebeu um longo gole. – Espero
que o duque tenha apreciado sua estadia aqui.
–
Tenho certeza de que sim, pai. – O Príncipe ergueu a taça em saudação e bebeu
também.
–
Ah, por favor. – A Rainha levantou-se rapidamente, indignada. Olhou para a Princesa:
- Sabe, às vezes penso que os deuses me amaldiçoaram no dia em que vocês dois
nasceram. Como foi que você não conseguiu
sair primeiro?
A
Princesa deu de ombros, com desdém.
E a
Rainha se retirou.
–
Boa noite, querida? – Arriscou o Rei, mas tudo o que ouviu foi a porta do salão
batendo com força atrás da esposa. Quando teve certeza de a Rainha já havia
ido, suspirou aliviado.
–
Este vinho de Lartz. – A Princesa falou devagar, admirando a taça depois de
saboreá-lo. – O duque fez muito bem em trazê-lo para nós. É a minha bebida
favorita.
– O
duque trouxe vinho de sua própria adega? – O Rei pareceu animar-se novamente. –
Como eu não sabia disto? Traga aqui.
Uma
das criadas pegou a garrafa sobre a mesa e levou até onde estava o Rei.
Serviu-o.
–
Nisso concordamos, filha. – Ergueu sua taça, triunfante. – O vinho de Lartz é
meu favorito também.
Bebeu
um longo gole, depois pediu à criada que o servisse novamente. Virou-se para
seu guardião:
–
Aceita uma taça, sir Dorian?
–
Desculpe, senhor. Receio ter de recusar.
Riez sempre admirara sir Dorian, o guardião do
rei. Tão focado em seu trabalho, e um
guerreiro como ninguém.
– O
duque trouxe vinho? – O príncipe perguntou-lhe baixinho. – Por que ele não me
disse?
E
Riez percebeu, mas já era tarde.
O
duque de Lartz esteve no reino, mas não trouxe bebida alguma.
E o
Rei começou a engasgar.
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